Ao ler o livro “Evocação de Manaus - Como eu a vi ou Sonhei”, do saudoso manauara Jefferson Peres, foi quando pude ter uma ideia como era a cidade, como se comportavam as pessoas e as famílias na década de 40 em nossa cidade (que vinha de trinta anos de estagnação e estava sofrendo com a Segunda Guerra Mundial). Eram formais, conservadores, machistas, respeitadores, católicos e amavam a sua cidade.
A cidade possuía cerca de cem mil habitantes, onde a classe média morava no centro, formada por oficiais das armas, médicos, advogados, comerciantes e políticos. Eles moravam em casa de no máximo dois pavimentos, casarões e palacetes, enquanto os menos favorecidos, a grande massa de trabalhadores morava em vilas e estâncias, em casas de zinco e telhas. Tinha apenas três bairros, Educandos, Cachoeirinha e São Raimundo. O bonde, a única forma de transporte público, indo até a bifurcação da atual Rua Recife e Constantino Nery (área rural, onde existiam as chácaras e igarapés), contando com pouquíssimos automóveis circulando.
Praticamente todos se conheciam, pelo menos de vista, por cruzarem-se diariamente, pois apesar dos bondes e dos reduzidos carros e das catraias (para travessia dos igarapés), a grande maioria gostava mesmo era de andar a pé.
Existiam poucos choferes de carros de aluguel - eles pertenciam a Garagem Avenida e Esportiva (ambas na Avenida Eduardo Ribeiro). Estacionavam no centro os seus automóveis da marca Packard, Studebaken e Cadilac, não existia taxímetro e a corrida era cobrada em comum acordo. Cada família tinha o seu motorista preferido, o qual era contratado para passear, visitar amigos distantes, fazer piqueniques, participar de casamentos, batizados e enterros.
Existiam pequenos furtos (subtração do alheio sem uso de violência) e as pessoas já evitavam dormir com as janelas abertas. Quando acontecia um crime mais violento, tipo homicídio, a repercussão era em toda a cidade, a comoção era geral e duravam semanas de matéria nos jornais.
Existia policiamento durante o dia pelos guardas-civis e, pela parte da noite, por duplas de soldados a cavalos e pelos guardas-noturnos que cobriam quarteirões, apitando o tempo todo, transmitindo segurança a todos. Praticamente não existia violência urbana, apenas casos pontuais de brigas entre bêbados e desordeiros.
Quando alguém adoecia, os parentes e amigos faziam visitas, levando solidariedade e carinho ao enfermo. No caso de morte, a viúva e familiares vestiam-se de preto e ficavam até seis meses de luto, depois, mais seis meses de luto brando, com roupas de preto e branco e braçadeira preta ou fita na lapela/bolso da camisa e não participavam de nenhum evento social na cidade.
Por estar em plena Segunda Guerra Mundial, com os navios mercantes brasileiros sendo atacados pelos submarinos alemães, existia um grande desabastecimento na cidade. Ninguém se incomodava de dar a um vizinho um pouquinho de açúcar, café, óleo, etc. Aliás, isso foi um hábito que durou por muito tempo.
A cidade respirava a guerra, com despedias e choros para aqueles que partiam para o front na Itália. Com o afundamento do navio Baependi (nome dado a uma vila que fica na Rua 24 de Maio, antes se chamava Vila Itália) morreram vários manauaras ilustres, ocasionado revolta na cidade, como uma quebradeira geral do Consulado da Alemanha, de residências e lojas de italianos, espanhóis e de partidários do eixo. Na cidade não morava japoneses, porém, os residentes na Vila Amazônia (Parintins, Baixo Amazonas) foram expulsos de suas terras (o que lamentamos até hoje).
Com a reabertura dos seringais e a chegados dos “soldados da borracha”, a cidade foi invadida, novamente, pelos nordestinos “arigós” (aves de arribação) e também por muitos norte-americanos que trabalhavam na empresa que transportava borracha em hidroaviões (Ilha de Monte Cristo). O aeroporto de Ponta Pelada foi construído em tempo recorde pelos americanos.
Os homens usavam paletó e gravata o tempo todo, com os chapéus panamá já caindo de moda. As mulheres não usavam calça comprida, era coisa de homem, com os vestidos e saias até abaixo dos joelhos, com meias para não mostrarem as pernas. Utilizam também anáguas e combinações para não aparecerem a calcinha e o sutiã.
Manaus era entrecortada por igarapés, onde a população gostava de fazer piqueniques e tomar banho de rio, com as mulheres usando maiôs inteiros e os homens bermudas longas. Quando o evento era promovido pelos colégios de freiras, as mulheres tomavam banho de vestido!
A Semana Santa era respeitada por todos, com poucas atividades no comércio (muitas lojas ficavam fechadas durante a semana) e na Sexta-Feira uma multidão iam à procissão, com muitos carregando cruz ou uma pedra na cabeça. Nem as “mulheres do sexo” faziam encontros nessa semana. As rádios somente tocavam musicas sacras e os cinemas passavam direto “A Paixão de Cristo”.
Não se ouvia falar em lésbicas na cidade, era muito raro. Alguns homens tentavam esconder ao máximo que eram gays (também conhecidos como enrustidos), quando assumiam a sua homossexualidade, eram marginalizados, apanhavam dos machos e era uma vergonha para a sua família, alguns deles tinham que deixar a cidade, geralmente partia, em definitivo, para no Rio de Janeiro.
As mulheres não chamavam palavrões em hipótese alguma e não bebiam em público. Os homens falavam baixinho entre amigos e jamais próximos a família. Eles também não fumavam diante dos pais, mesmo depois de adultos.
O pedido de casamento era um evento marcante, pois todos da casa, os vizinhos e parentes aguardavam com muita expectativa o dia – uma autoridade ou o pai do rapaz era quem fazia o pedido, sem a presença dos noivos. Selavam o acordo com uma taça de champanhe e, era muito raro não acontecer o casamento.
A mulher tinha que casar virgem, caso contrário, o homem devolvia ao seu pai. O camarada que casasse com uma desvirginada era apelidada na cidade por “pedreiro” (aquele que tampava buraco).
Caso o homem desvirginasse uma mulher antes do casamento, os pais arrumavam o casamento as pressas e, para não ficar falada na cidade, inventavam que o filho de sete meses nasceu prematuro. Quando não era possível casar, a mulher ficava reclusa em casa até nascer o filho ou mudava de cidade.
A mulher tinha que casar aos vinte anos, conhecido como “o primeiro tira na macaca”, depois aos 25 anos (segundo tiro) e, por último, aos trinta anos (o terceiro tiro), após essa idade era muito difícil encontrar um pretendente, ficando no “caritó”, permanecendo titia para o resto da vida.
A mulher estudava até o colegial e o magistério (ensino médio), dificilmente fazia um curso superior, algumas faziam Direito, mas não exerciam a profissão ao casar, pois toda mulher tinha que cuidar da casa, dos numerosos filhos e do marido, sendo sustentada por ele.
A esposa não traia o marido, pelo menos isso não era divulgado (quando existia, era caso até de morte), porém, os maridos pegavam as empregadas domésticas e as barangas, além de terem uma amante (quando tinham dinheiro para sustenta-las). Não havia separação formal, ficavam juntos até a morte, mesmo em camas separadas. Em eventos sociais, o marido levava sempre a esposa, jamais a amante.
A família era patriarcal, o pai mandava e decidia tudo, inclusive escolhia até a roupa que a mulher usaria ao sair para um evento social. Algumas delas ficavam reclusas em suas casas (pelos maridos enciumados).
Os filhos tomavam benção dos pais, dos tios e avós. Rezavam o Pai Nosso e a Ave Maria ao dormir, pois a grande maioria das famílias era católica. Utilizava em suas casas um oratório com vários santos e não admitiam protestantes na cidade (havia muita rivalidade e até brigas). Todos iam às missas nas igrejas da Matriz, São Sebastião e Remédios.
Nos finais de tarde as famílias, por ainda não existir a televisão, colocavam cadeiras de embalo em frente de suas casas, para papear com os vizinhos, enquanto a meninada brincava de marmanja, cemitério e outras brincadeiras infantis, podendo permanecer na rua até às onze da noite. Todos brincavam juntos (pobres e ricos), sem a existência de preconceitos entre eles, apesar de viverem em uma sociedade preconceituosa.
Os jovens do sexo masculino gostavam de “morcegar” os bondes (entrar e sair em movimento, sem pagar), deixavam vidros nos trilhos para fazer o cerol das linhas de papagaios. Muitos deles tinham a iniciação sexual com empregadas domésticas ou com as prostitutas em pensões e no baixo meretrício.
As do sexo feminino eram mais vigiadas, namoravam apenas na sala de estar de sua casa, sob a supervisão de alguém da família. Os namorados jamais saiam sozinhos, eram sempre acompanhados dos irmãos mais velhos ou alguém de confiança da família. Aquelas moças que fossem pegas sozinhas com o namorado ficavam sendo faladas na cidade.
Amavam a cidade, gostavam de passear de bondes, principalmente nas linhas Saudade e Circular. Frequentavam o Roadway (Porto de Manaus) nos finais de semana e sempre iam se despedir dos entes queridos que viajassem. Gostavam das praças, sendo a Praça da Saudade a queridinha de todos. Frequentavam em peso o Parque Amazonense (para assistir eventos esportivos) e ao Teatro Amazonas (shows e peças teatrais) e cinemas no Cine Guarany. A cidade era pequena, pacata, bonita, limpa, bem arborizada, sem violência urbana e muito boa para se viver.
Quem viveu os anos quarenta pode contar e registrar, foi o caso do nosso saudoso Senador Jefferson Péres.
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