Quem teve a felicidade de morar
em uma cidade pequena, onde quase todo mundo se conhecia, fica guardado na
memória aqueles vizinhos
marcados com as suas características pitorescas – no meu caso particular, tive
o privilégio de usufruir de uma Manaus ainda pacata e, de nascer e morar, na Rua
Igarapé de Manaus, onde vira e mexe lembro dos meus vizinhos, principalmente
daqueles mais engraçados.
MAL FEITO A MARTELO –
Santo Deus, como pode alguém colocar um apelido desses numa criatura! Mas,
assim foi e, assim ficou para o todo sempre. Naquele tempo não existia esse tal
de “bullyng” – mas, o cara nasceu
mais feio do que um processo de pobre e, era chamado assim por toda a extensão
da rua. Ele era meio penso, com a cabeça um tanto esquisita, com um pezão
daqueles, magrelo e vara pau. Depois de longos anos, o encontrei na rua e, fez
questão de falar comigo – Ai, Rochinha,
tudo bem? Respondi: Tudo bem, Mal, Mal...!
Fiquei um pouco desconcertado, pois apesar de sermos amigos de infância, nunca
soube o seu nome verdadeiro e, não achei nada legal chamá-lo pela alcunha. Ele
respondeu: - E o Mal Feito a Martelo, porra,
não lembra mais? Lembro sim, Mal
Feito a Martelo! Respondi bem alto e sem nenhuma vergonha!
CASAL VINTE – Hélio e
Glória, um casal elegante, bonito e remediado. Eram unha e carne. Todo santo
dia, a sua mulher o acompanhava ao trabalho e também ia buscá-lo na saída,
podia chover canivete que ela sempre estava lá no batente! Ele trabalhava na
Central de Ferragens – nunca faltou um dia sequer a labuta, mas, quando o
relógio batia quatro horas, ele saía para tomar rapidinho meia dúzia de cerveja
no Bar do Cardoso (na Praça do Hotel Amazonas), voltava quinze para as seis, antes
da sua mulher chegar! No final do mês, quando pegava o “boró”, inventava uma
cobrança e, saia depois de uma da tarde, dizem ou não sei que, ele ia “pegar
uma prima” e, voltava sempre antes da mulher chegar! Voltavam de braços dados,
parando nos botecos do caminho (quando ela permitia) - fazendo todo santo dia essa
via crucis até chegarem em casa. Assim
foi até se aposentarem!
DONA MARIA UCHÔA – Ela era
uma católica fervorosa e, tinha uma promessa que cumpria fielmente todo ano. No
dia 21 de Junho, dia de São Lázaro, o Leproso (aquele que os cães lambiam as
suas chagas), e que ficou conhecido como o protetor dos mendigos e dos leprosos.
Pois bem, a Dona Maria fazia um grande banquete para os “vira-latas” bem no
meio da rua. Colocava uma imensa e bonita toalha de mesa, diversos pratos
fundos, depósitos de água e, muita comida de humano: Sopa de Carne com legumes,
Carne de Panela, Bifes Acebolados e Cozidão de Carne com Ossos – com direito a Sobremesas:
Bolos, Mingaus e Pudins. A cachorrada “batia com força”, com direito a “repeteco”. A molecada que passava um “Rafael Danado”, ficava com água na
boca, mas, não tinha jeito: a comida era servida somente para os cachorros, com
direito a uma briga por um osso bem carnudo! Era o dia da desforra dos caninos,
eles comiam do bom e do melhor, tudo pago pela Dona Maria Uchoa, porém, durante
o ano todo viviam que nem o São Lázaro, comendo apenas migalhas!
SÊO ARTHUR – Tinha um boteco
em que vendia também secos e molhados. Namorou, casou, morou e teve os seus filhos
na parte detrás do seu estabelecimento. Passou a vida inteira dentro do local
de trabalho, saia muito pouco, pois todo dono de mercearia é um escravo do ganha-pão,
com a labuta de domingo a domingo. Não fechava a bodega nem na hora do almoço,
como faziam os outros concorrentes – pegava a “broca” e fazia a sesta em pé!
Como o assoalho era de tábuas, quando alguém adentrava, ele acordava da soneca
com o barulho. Certa vez, o Tico, um vizinho gozador até a alma, chegou bem devagarzinho, sem fazer barulho, pegou uma botija de gás vazia, levantou e jogou ao chão e,
gritou: - Tem gás? Ele respondeu ainda meio sonolento: - Não! O Tico agradeceu,
colocou a botija no lombo e “pegou o beco”!. Fiz isso várias vezes. Depois de
algum tempo, o Tico estava numa lisura daquelas e, foi até o boteco: - Sêo
Arthur, o papai está vendendo umas seis botijas de gás, o senhor tem interesse
em comprar? Ele respondeu: - Tenho sim, pois as minhas botijas estão
desaparecendo! Depois de muitos anos, quando o Sêo Arthur já estava velho e
usava óculos tipo “fundo de garrafa”, o Tico resolveu falar a verdade e reparar
o erro da sua adolescência.
DONA ROSA – Ela era uma
típica enfermeira de antigamente: uma senhora de idade que ainda trabalhava nos
hospitais públicos, gordinha, ranzinza, parecendo que estava de mal com o
mundo, braba “no balde”. Mascava um tabaco de corda e, era o terror da molecada
da rua, pois era a única que aplicava aquelas injeções que doía até a alma!
Quando alguém fica va doente, os pais tinham de amarar o caboco e levá-lo até a
Dona Rosa. Acho que ele era sádica, tinha todo um ritual, colocava álcool num recipiente,
tocava fogo para esterilizar as agulhas grandes e grossas e as ampolas de vidro,
depois, metia a agulha num vidro, quebrava uma ampola e fazia um teste,
escorrendo um pouco do líquido, aquilo era cruel para a meninada. Dava as
ordens aos pais: - Tira a calça dele, a
injeção vai ser na bunda, não quero que se mexa e muito menos choro, senão
aplico outra! Meu Deus, pense num sufoco! Ela ainda ria, chamando o guri de
frouxo! A mulher era durona, não gostava de ninguém, muito menos de crianças
barulhentas, mas, próximo ao Natal, o seu coração amolecia, mudava de feição,
ficava mais alegre, não aplicava as malditas injeções e, pasmem, fazia
chocolate quente com biscoitos, convidava todas as crianças para lancharem em
sua casa! Mudava da água para o vinho – fazia uma lapinha e, pedia para a
molecada rezarem ao redor. Depois do Natal, a Dona Rosa voltava ao oficio de
aplicar injeções doloridas e fazer chorar um montão de crianças da nossa rua!
Existem muitos outros e,
cada um, tem a sua história – quanto a Dona Maria Belém, Sarto Nego Mau,
Adelson Mal Elemento e o Goiaba, já fiz tempo atrás postagem sobre eles, sem
falar no meu pai, o Rochinha do Violão, o velho foi uma figura! É isso ai.
Um comentário:
Fui da Manaus desse tempo Rocha. Morava na Pça. da Polícia, ao lado onde hoje é a Alemã. Na redondeza também existiam tipos como você tão bem descreve. Tinha um com mania de técnico de futebol, de tão magro era conhecido como Fernando Carcaça. Parabéns pelas crônicas. Do Rio de Janeiro Diniz Alexandre Pereira.
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