segunda-feira, 9 de março de 2009

CIDADE FLUTUANTE

O quintal da minha casa
AURÉLIO MICHILES
Para o dr. P. E. Vanzolini


Cidade Flutuante, com suas ruas sinuosas, boiando no rio. O seu
comércio funcionando 24 horas e movimentando uma economia paralela, um
reduto da boemia, rufiões, prostitutas, contrabandistas, ladrões, poetas, escritores e turistas em busca do eldorado ou simplesmente comer um jaraqui frito com baião-de-dois.
Na Amazônia, esse tipo de edificações flutuantes, a falta de conforto e de saneamento básico é compensada pela natureza generosa – estima-se que duzentas mil toneladas de peixes por ano são geradas na malha aquática amazônica.
Cada pessoa consome mais de quarenta quilos de peixe por ano. Um valor bastante alto se compararmos ao consumo de peixes de outras regiões do Brasil.

Mas a Cidade Flutuante não agradava ao olhar da elite conservadora, causava
vergonha e desconfiança. Numa época em que essas mesmas pessoas não davam bola para a paisagem à beira rio, eram os pobres que a ocupavam com suas casas de arquitetura ribeirinha.
A elite construía suas residências no sentido norte, em direção ao fundo da selva. Ao contrário dos dias de hoje, quando o movimento é inverso, os pobres são expulsos para dar lugar aos condomínios fechados a margem do rio.

Apareceram na Cidade Flutuante algumas senhoras dizendo que estavam fazendo uma pesquisa para melhorar a vida dos moradores. “Essa favela de palafitas perdeu o controle, está crescendo despudoradamente. Agora, vocês serão transferidos para a terra firme e vão morar num verdadeiro bairro residencial”.

Foi o sinal para o início da longa temporada da Ditadura Militar. Não demorou a chegar às balsas, e quem pôde salvar alguma madeira, zinco, gamelas, cuias, palhas, recortes de revistas e fotos para reutilizar em suas novas casas o fez, mas quem não conseguiu acabou por contemplar a sua casa amarrada e arrastada por grossas correntes de ferro.
O rio encarregou-se de engolir e esconder e fazer de conta que nada viu, somente algumas toras de madeiras imputrescíveis, que serviam como bases das casas – piranheira, piquiá, paracauuba ficaram de bubuia sob o comando e o destino da correnteza do rio Negro. E essa também era a certeza que O homem do rio já havia ampliado a linha d’água no horizonte de Chico Bacurau. Pode-se afirmar que a sua vida foi o antes e o depois deste filme.

Abrindo uma manuseada bíblia sagrada ele mostra um maço amarrotado dos
cigarros da marca Gitanes: “É dos gringos”, diz. Quando menino íamos passear no Porto Flutuante de Manaus, o Roadway – “o rodo”, buscar ou levar algum parente ou mesmo visitar um grande navio estrangeiro; aproveitávamos então para ficar debruçados espiando aquele mundão das águas negras e apreciar os botos boiarem feito mistério: “Essas águas, para onde vão quando o rio Negro faz a vazante? Seria como a vida, nascemos, crescemos e morremos, mas quanta besteira. Vive-se só pra isso, morrer?”