sexta-feira, 20 de março de 2009

O GANSO DO CAPITÓLIO

Às vésperas do doutor Plínio Ramos Coêlho assumir o seu primeiro mandato de governador do Amazonas, o vespertino "A Tarde", do jornalista Aristophano Antony, publicava duas notas oficiais do Gabinete do governador em exercício, deputado Perseverando da Trindade Garcia. A primeira nota convidava "as autoridades civis, militares e eclesiásticas e o povo em geral" para a posse do novo governador, no dia 31 de janeiro de 1955. Dizia a segunda nota: "(...) de ordem do Exmo. Sr. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, a partir de 0 hora do dia 29 do corrente a guarda do Palácio Rio Negro e a manutenção da ordem pública nesta capital ficarão sob as ordens do Exmo. Sr. Cel. Comte. da Guarnição Federal do Amazonas". Era semelhante o teor da nota oficial do Comando da Guarnição Federal do Amazonas, publicada na mesma edição do mesmo jornal: "(...) em cumprimento a uma ordem do Exmo. Sr. Presidente da República, a guarda do Palácio Rio Negro e a manutenção da ordem pública desta capital ficarão a cargo do Comte. da Guarnição Federal do Amazonas, a partir de 0 hora do dia 29 de janeiro de 1955".É possível que o destacamento de forças federais para garantir a ordem pública tenha sido uma demonstração desnecessária de zelo do presidente Café Filho, mas a verdade é que aquele era um momento político de grande tensão em Manaus. A recente eleição de Plínio Coêlho para o Governo estadual significava o rompimento da estrutura de poder que se consolidara no Amazonas a partir de 1930 com a liderança carismática de Álvaro Maia e se desintegrara no último governo do grande tuxaua, acumulando pesados débitos econômico-sociais. Plínio era uma esperança para o povo e uma ameaça para as elites. Acostumadas à sombra confortável do Poder, elas temiam a perda de status político-social, o confronto com o ideário nacionalista-trabalhista do novo governador – que favorecia naturalmente a ascensão das lideranças sindicais.O temor das elites não parecia ser tão infundado.Plínio Ramos Coêlho era o líder de maior importância entre os políticos amazonenses que se tinham revelado com a queda da ditadura getulista em 1945. Advogado, jornalista, ele levantava as massas com a sua oratória brilhante e a sua posição firme e vigilante em defesa dos interesses dos trabalhadores e da moralidade da administração pública – o que lhe valeu ser chamado de "o Ganso do Capitólio". Elegera-se sucessivamente deputado estadual constituinte em 1947 e deputado federal em 1950, quando apoiara a candidatura do doutor Álvaro Maia para o Governo estadual, mas não tardara a romper a aliança com o pessedismo e tornar-se o mais duro crítico do alvarismo. Assumira a liderança da oposição, comandando o seu partido, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e acabava de ganhar as eleições de 3 de outubro de 1954, vencendo o candidato situacionista ao Governo, Ruy Araújo, e selando a derrota de Álvaro Maia, que se desincompatibilizara do Governo do estado para concorrer ao Senado.A consagração de Plínio Ramos Coêlho sinalizava o ocaso da longa trajetória política de Alvaro Botelho Maia.O perfil econômico-social do Amazonas era desanimador. Na débil estrutura de produção daqueles tempos, o capital era um fator muito escasso. Os municípios do interior estavam reduzidos a portos de lenha. Em Manaus, os grandes referenciais da riqueza da borracha ameaçavam desfazer-se. Os prédios públicos deterioravam-se. O sistema de energia elétrica estava em colapso. Os bondes sumiam dos trilhos, agravando a situação dos transportes coletivos. Os funcionários públicos faziam enormes filas à porta da Fazenda Pública para receber minguados salários com sete meses de atraso."A situação do Estado é a de u’a massa falida, (...) mas, ajudado pelo Capital privado, irei criar o clima de pleno emprêgo, a fim de que todos tenham trabalho conforme suas aptidões", dizia o doutor Plínio em sua primeira Mensagem à Assembléia Legislativa, 45 dias depois de tomar posse no Governo.O clima de pleno emprego era por certo uma utopia. Mas era possível governar produtivamente em tempos de muita pobreza. Plínio queria aumentar a participação do Estado na economia, expandindo a estrutura de serviços públicos e fomentando a industrialização. E perseguia obstinadamente os seus objetivos.No afã de privilegiar o interesse público, impor austeridade a uma estrutura de administração muito desgastada e gerar a credibilidade indispensável para atrair investimentos, Plínio contrariou interesses, plantou inimizades e certamente cometeu equívocos. Mas conseguiu executar boa parte de um programa de Governo muito ousado para o Amazonas daquele tempo, que incluía, entre outros itens, a profissionalização da administração estadual, o desenvolvimento de recursos humanos, o saneamento das finanças públicas, a reestruturação do sistema tributário estadual, a ampliação da infra-estrutura viária, e a criação de um leque de empresas de economia mista, com a finalidade de dinamizar serviços essenciais, como alimentação e transportes, fomentar a capacidade empreendedora, implantar projetos industriais dedicados ao aproveitamento de matéria-prima regional.Nesse cenário de mudanças, Plínio criou o Banco do Estado do Amazonas, a Transportamazon, a Alimentamazon, a Papelamazon, a Cimentamazon, a Faculdade de Ciências Econômicas, instituiu o sistema estadual de arrecadação tributária, assentou colonos japoneses na Estrada Manaus-Itaquatiara; comprou e instalou uma usina flutuante, tentando reverter o quadro de falência do sistema de energia elétrica.Plínio Ramos Coêlho governou até o último dia do seu mandato (31 de janeiro de 1959). Quatro anos depois voltou ao Poder, eleito mais uma vez pelo voto popular, mas governou pouco mais de um ano e dois meses. Foi deposto pelos militares na noite de 14 de junho de 1964, quando presidia o Festival Folclórico na extinta praça General Osório.O arbítrio sufocou a carreira política de Plínio Coêlho.Plínio foi cassado, preso, injustiçado.Amargurado, desencantado, Plínio recolheu-se ao convívio da família e de amigos fiéis. Dedicou-se à advocacia e ao magistério superior. Deixou-se ficar rodeado de livros – lendo, estudando, escrevendo, fazendo poesias.Plínio foi empurrado para longe do povo, mas o povo não o esqueceu.Como há quarenta e tantos anos, quando a cidade tinha cerca de 10% da população que tem hoje e o governador abria as portas do Palácio para receber os cidadãos em audiência pública, o povo foi ao encontro do doutor Plínio Coêlho na tarde e na noite de domingo, 5 de agosto de 2001, na madrugada e na manhã do dia seguinte.Aquelas pessoas anônimas foram chegando cheias de emoção. Simples, quase todas humildes, algumas já idosas, elas foram entrando sem cerimônia no Palácio Rio Negro, em busca do reencontro com o amigo querido que não viam há tanto tempo.Em silêncio, falaram de saudade.
(*) Etelvina Garcia é jornalista. E-mail: eng@argo.com.br
Fonte: Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas: www.sec.am.gov.br