quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A PICHAÇÃO E A GRAFITAGEM NA ÓPTICA DO DIREITO PENAL




Domingo passado fiz uma caminhada pelo centro de Manaus. Um fato que me chamou muito a atenção, foi a pichação nos prédios antigos. O Colégio IEA acabou de receber uma grande reforma, ficou novinho em folha, está à mercê dos vândalos, para iniciarem o processo de pichação. Dá uma tristeza em ver o Colégio Benjamin Constant, a Biblioteca Municipal, o Ideal Club e a Praça do Congresso. Os criminosos não chegam ao Largo de São Sebastião, em decorrrência de existir no local segurança 24 horas. A Prefeitura de Manaus está colocando a Guarda Municipal para tomar conta de alguns logradouros públicos, o trabalho é árduo, porém, necessita de um efetivo maior. Foram realizados alguns projetos de conscientização dos pichadores e grafiteiros, não deu nenhum resultado efetivo. O que fazer agora? A esse respeito, publico, abaixo, o artigo do Dr. Vinícius Borges de Moraes.


"A pichação e a grafitagem na óptica do direito penal: delito de dano ou crime ambiental?
Texto extraído do Jus Navigandihttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8039 Vinicius Borges de Moraes, mestrando em Direitos Fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil, em Porto Alegre (RS) [...] Resumo: A crescente onda de pichações e grafitagem tem afetado a vida de milhares de cidadãos das metrópoles brasileiras. Em face desta grave problemática, o presente artigo busca identificar como é tratada a criminalização das condutas de Pichação e Grafitagem no Barsil, ressaltando as controvérsias advindas das recentes alterações legislativas, bem como a desproporcionalidade entre as penas cominadas. A investigação parte da análise gramatical e teleológica dos textos normativos, interpretação esta sempre orientada pela finalidade social das normas penais. Diante disso, foram utilizados na análise os métodos sociológico e histórico-hermenêutico. A título de conclusão, o trabalho também sugere medidas para a minimização e erradicação do problema.
Mesmo se tratando de um delito considerado de menor potencial ofensivo e que, em tese, não contribui para o aumento da sensação de insegurança ou violência urbana, a crescente onda de pichações e grafitagem tem afetado substancialmente a vida de milhares de cidadãos de nosso país. Por outro lado, as autoridades governamentais não conseguiram abordar, ainda, a questão de maneira eficiente. Logo, o problema permanece sem resposta, pior, parece agravar-se.
Os reflexos negativos destas condutas são percebidos tanto pelo ponto de vista ambiental, como pelo ponto de vista patrimonial. Contudo, o que mais choca não é somente o desrespeito pelo patrimônio alheio ou a poluição visual, mas também que tais condutas, longe de divulgarem mensagens de protesto (fator que antes era tido como inerente a estas ações), as pichações atuais mais se assemelham a atos de vandalismo gratuito contra o ordenamento urbano das cidades, ou então danos egoísticos à propriedade alheia. Em regra, não poderíamos sequer admitir o argumento de que a conduta reflete o direito à liberdade de expressão de um indivíduo, já que a poluição visual decorrente das diversas inscrições, símbolos e desenhos, na grande maioria das vezes, sequer é decifrada pela população, que não vislumbra qualquer fundamento ou motivo para a maioria destas manifestações.
Diante dessa situação que cresce a proporções geométricas, na esperança de encerrar definitivamente o problema, mais uma vez recorreu o governo ao seu mais poderoso e contundente instrumento: a lei penal. Assim, foi criado um tipo penal específico para o delito de pichação e grafitagem. Agravou-se a pena para alguns tipos de condutas, abrandou-se para outras. Todavia, longe de resolver o problema, os costumeiros atropelos jurídicos dos legisladores criaram um cenário confuso e inviável para a solução da questão. Na realidade, parece ter ocorrido um retrocesso, tamanha é a desorientação que se enfrenta hoje.
Diante desses fatos, os aplicadores do direito, bem como os estudiosos sobre o tema perguntam-se: o que é pichação e grafitagem? São condutas distintas ou não? Qual o bem jurídico tutelado pelo direito penal? Há conflito entre a liberdade de expressão e o direito patrimonial? Será o direito penal o instrumento mais eficaz para lidar com esse problema?
Para obtermos respostas a essas fundamentais questões, primeiramente devemos compreender quais as origens desse crescente fenômeno e qual sua verdadeira repercussão social. Precisamos identificar em que consistem os atos de pichação e grafitagem, visto tratarem-se de condutas distintas. A análise do conflito entre os princípios de liberdade de expressão e o de direito patrimonial também merecerá extremada atenção. Por fim, buscar-se-á identificar qual é o bem jurídico protegido pelo direito penal, no que tange aos delitos de pichação e grafitagem.
Origens da Pichação
A pichação e a grafitagem são práticas existentes há muito tempo nas sociedades humanas, registros históricos revelam que já eram praticadas na Antigüidade, tendo sido, inclusive, muito úteis para arqueólogos e historiadores. Como exemplo, podemos citar a antiga cidade de Pompéia, cujas pichações deixaram-nos valorosos registros sobre a vida cotidiana daquela comunidade [01].
Na Europa das décadas de 60, 70 e 80, a grafitagem e a pichação surgem como formas de expressão artística e protesto daqueles que não compactuavam com a sociedade tradicional. Essas pessoas, ocupando espaços urbanos que antes se encontravam abandonados (edifícios ou blocos condominiais), instalaram verdadeiras sociedades alternativas, contrárias às políticas da época. Foram nesses centros, inclusive, que começaram a nascer e ganhar força muitos grupos que difundiam idéias anarquistas.
Nessas sociedades alternativas, o custo de vida era extremamente baixo e as atividades artísticas ali desenvolvidas, ao mesmo tempo que representavam uma fonte de renda, serviam para demonstrar que os espaços invadidos estavam tendo uma destinação socialmente útil , conquistando a simpatia de muitas pessoas da sociedade tradicional. E é justamente nesse ambiente alternativo que surge o grafite, que, juntamente com outras formas de expressão artístico-culturais, era principalmente utilizado para a revitalização desses espaços públicos antes abandonados. Versátil, era também poderosa ferramenta de comunicação de caráter antiinstitucional, atingindo grande número de pessoas, uma vez que refletia, em plena via pública, o pensamento das comunidades menos favorecidas. [...] Conceituação de Pichação e Grafitagem
Ainda que tenhamos plena consciência de que esses dois gêneros possuem cada qual diversas subespécies (ding dong, tag, taggin up, etc.), é necessário e suficiente que, para uma melhor adequação jurídica, distingamos apenas as condutas pichar e grafitar. Para tanto, basta utilizarmos uma interpretação gramatical, a partir de uma análise morfológica dos termos utilizados pelo legislador.
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 1.0.5, pichar é escrever ou rabiscar dizeres de qualquer espécie em muros, paredes ou fachadas de qualquer espécie. No Dicionário Aurélio, o mesmo termo guarda forte relação com mensagens de cunho político . Já a grafitagem (grafito – em italiano, graffitto – graphein, em grego) está relacionada a inscrições ou desenhos realizados em épocas antigas. Retornando ao exemplo de Pompéia, não raras vezes tais registros foram muito importantes para estudos históricos ou arqueológicos.
[...]À luz da antiga interpretação (art. 163), o ato de "pichar" era tratado como uma conduta compreendida no tipo penal "destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia". Incorrendo neste artigo, o agente poderia ser punido com pena de detenção que variava de um a seis meses, ou multa. Caso o patrimônio deteriorado fosse público, o pichador seria enquadrado na forma qualificada do delito (inciso III), sofrendo assim uma pena mais grave, de seis meses a três anos de detenção e multa, além da pena correspondente à violência.
Hodiernamente, o dispositivo que tipifica a conduta encontra-se inserto na Lei N.º 9.605/98, mais precisamente no art. 65, que incrimina aquele que "pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano", imputando-lhe uma pena de detenção que pode variar de três meses a um ano de detenção e multa. O mesmo artigo, em seu parágrafo único agrava a pena mínima para seis meses, quando o ato for realizado em depreciação de monumentos ou bens tombados em razão do seu valor artístico, arqueológico ou histórico.
Assim, não é necessária uma grande análise para percebermos que o legislador achou por bem agravar a pena para os casos em que as pichações são cometidas em bens privados, atenuando-a para as ocorrências em detrimento dos bens públicos. Senão vejamos. Uma pichação contra o patrimônio privado, à luz do art. 163 do CP, seria punida com uma pena de um a seis meses de detenção, ou multa. À luz do dispositivo penal que atualmente trata da matéria, a pena será de três meses a um ano de detenção e multa. Agora, se o delito for praticado contra bem público, independentemente de se tratar de monumento ou bem histórico, pelo art. 163 do CP, seria considerado um Dano Qualificado, punido com pena de detenção de seis meses a três anos e multa (além da pena correspondente à violência). Atualmente, a mesma conduta receberá uma pena de seis meses a um ano de detenção e multa. Mas isso somente quando for realizada contra patrimônio histórico, se realizada na fachada de um prédio administrativo, por exemplo, receberá o mesmo tratamento dispensado às propriedades privadas, ou seja, pena de detenção de seis meses a um ano e multa.
Percebe-se, portanto, que para fins penais o legislador atribuiu igual relevância aos patrimônios públicos e privados, diferenciando apenas aqueles que possuem comprovado valor artístico, histórico ou arqueológico.
Outro ponto que deve ser abordado é a delimitação do que se deve entender por pichação e grafitagem. Como vimos anteriormente, o legislador não deixa expresso o que é uma e outra conduta. Não há também nenhuma referência legislativa que determine o que caracteriza um e outro ato. Seria a utilização de tinta que caracterizaria o delito de pichação e grafitagem? Ou seria o ato de escrever e desenhar em fachadas?
[..] Do Bem Jurídico Protegido
Não é somente nas penas que o legislador resolveu inovar em relação à matéria. Resta evidente que os tipos penais apresentados destinam-se a bens jurídicos completamente diferentes. O primeiro, previsto no art. 163 do Código Penal, tem por objetivo tutelar e proteger o patrimônio da vítima, seja público ou privado. Enquanto que o segundo, tem por finalidade preservar o ordenamento urbano, direito difuso.
Isso é de extrema importância, pois trará inclusive reflexos na prática processual.
Ao considerarmos a pichação como crime de dano patrimonial, a ação penal, por força do artigo 167 do CP, somente será procedida mediante queixa da vítima (excetuando-se os casos em que o patrimônio seja público). O artigo é uma decorrência lógica do princípio de que o titular de um bem tem total disponibilidade sobre este. Razão pela qual o consentimento do ofendido nesse tipo de delito exclui a antijuridicidade da conduta. Se considerado um delito contra o ordenamento urbano, art. 65 da Lei N.º 9.605/98, a ação penal será pública incondicionada, ou seja, a legitimidade plena para promover a ação é do Ministério Público, ainda que o bem atingido seja privado. Não cabe mais ao particular a iniciativa pela responsabilização criminal dos infratores.
Neste ponto, especial atenção devemos dispensar ao verbo núcleo utilizado pelo legislador ao positivar o delito em comento, qual seja, "conspurcar". O termo empregado, por si só, já enfatiza a finalidade da norma; evitar que o ordenamento urbano seja sujo, poluído, manchado. O que se pretende, portanto, é evitar a poluição visual dos centros urbanos. Tanto é assim, que o legislador também deixa claro ao referir que a conspurcação deverá ser realizada em "edificação ou monumento urbano". Logo, não é intenção do legislador, resguardar áreas rurais ou outras de pequena concentração de pessoas.
[..] Liberdade de expressão vs. Direito Patrimonial
Com relação ao evidente conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à integridade patrimonial, acreditamos que a prudência deve orientar qualquer análise e esta deverá ser efetuada de acordo com realidade social da comunidade.
Conclusão
Diante desses fatos, não podemos admitir, por amor à lógica jurídica, que a questão deva ser encarada como um delito contra o ordenamento urbano. Não que estejamos ignorando a existência de um reflexo negativo sob o ponto de vista ambiental, de fato há um sério dano ao meio ambiente, especialmente no que se refere à poluição visual. Contudo, cremos que se trata apenas de um reflexo, não podendo o delito ser tratado consoante essa perspectiva.
Ainda que latente essa afronta ao ordenamento urbano, os atuais dispositivos abordam a situação de maneira completamente desproporcional e ineficaz, sob o ponto de vista jurídico. Isso, sem mencionar o fato de estarem sendo desconsiderados institutos basilares do direito, como a prerrogativa da livre disponibilidade patrimonial. Tais Fatores desencadeariam situações onde o agente ou partícipe, mesmo sendo legítimo proprietário, responderia criminalmente por ter grafitado a fachada de seu imóvel.
Por outro lado, a experiência nos mostra que a utilização do artifício de agravação das penas no intuito de reprimir determinadas condutas tem se mostrado uma técnica ineficiente. Como exemplo, resguardadas as devidas proporções, podemos citar a "hedionda lei dos crimes hediondos", alvo de ferrenhas críticas por parte de toda a doutrina penal.
Devemos ter em mente que a pichação e a grafitagem são condutas completamente distintas, apesar de terem recebido idêntico tratamento pelo legislador brasileiro, fato igualmente desproporcional. Por outro lado, também não podemos dizer que se tratam de condutas que devam ser encaradas como uma simples forma de expressão, uma vez a realidade político-social de nossa época permite que o mesmo efeito seja obtido sem ofensa a direitos de terceiros, ou da própria coletividade.
Diante dessas questões aqui analisadas, portanto, acreditamos ser mais adequado tratar o problema sob a óptica do crime de dano ao patrimônio alheio, deixando ao particular a opção de incriminar ou não a conduta dos agentes (excetuando-se logicamente as condutas em detrimento do patrimônio público). Até porque, se analisarmos friamente a questão, ainda que seja extremamente desconfortável o convívio com uma série de inscrições e símbolos nas fachadas das edificações urbanas, muitas vezes ininteligíveis para a grande maioria dos cidadãos, o dano não nos atinge de uma forma direta. Ao transeunte é facultada a escolha de trajetos mais aprazíveis ou, em alguns casos, ignorar as mensagens. Porém, para aquele que tem sua propriedade pichada, a depreciação patrimonial bem como os custos para sua recuperação são sentidos de forma direta. Se os órgãos públicos pretendem participar de uma forma mais ativa e resolver a questão, não será trazendo para si a legitimidade para a ação penal, tampouco o agravamento da pena dessas condutas, mas sim realizando e motivando campanhas de conscientização e educação/cidadania.