quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

RECORDANDO OS ANTIGOS CARNAVAIS DE MANAUS - SIMÃO PESSOA


*Simão Pessoa


Até a década de 70, o carnaval manauense se limitava ao circuito dos bailes de clubes, obedecendo ao seguinte rodízio: no sábado gordo, baile adulto a partir das 23h. No domingo, carnaval infantil a partir das 16h. Na segunda, folga geral. Na terça-feira, baile adulto a partir das 23h. No período pré-carnavalesco, os bailes aconteciam nas sextas e sábados.

Os desfiles dos blocos de sujo e foliões isolados ocorriam no domingo e na segunda-feira, a partir das 14h, sempre na avenida Eduardo Ribeiro. As escolas de samba desfilavam na terça. A concentração dos blocos ocorria na Praça da Saudade. O percurso iniciava na Praça do Congresso, descia a avenida, contornava o Relógio Municipal, subia a avenida e fazia a dispersão na rua Ramos Ferreira, em direção à avenida Getúlio Vargas.

O bloco Mocidade, formado por intelectuais, desportistas, profissionais liberais e comerciantes, era o mais famoso de todos. Os brincantes desfilavam em cima de um caminhão-alegórico, que saía da Serraria Moraes, em Educandos, e seguia pelas ruas da cidade até ao Centro de Manaus. O ex-presidente da FAF e jornalista Flaviano Limongi, junto com seu irmão, Andréa, e o médico Theomário Pinto da Costa, eram os responsáveis pelo fuzuê.

Os bailes carnavalescos mais disputados localizavam-se no centro da Cidade e eram considerados os “carnavais da elite”. As festas temáticas eram acessíveis somente aos sócios, que entravam de graça, e a quem pudesse pagar os preços exorbitantes cobrados na época. A diversão dos jovens de origem operária era “furar” o esquema de segurança desses clubes, para se divertir de graça junto com os “bacanas”.

Os bailes mais famosos ocorriam no Ideal Clube (“Baile de Máscaras” ou “Bal Masqué”, como os colunistas sociais preferiam escrever, para manter o distanciamento crítico da plebe rude e ignara), Rio Negro (“Baile do Havaí”), Bancrévea (“Vamos pegar o sol com as mãos!”), Cheik (“Saara 40 Graus”), Olímpico (“Baile da Kamélia”) e Nacional (“Baile Azul e Branco”). Nesses bailes, as mulheres compareciam ornamentadas de plumas, lantejoulas e fantasias ricamente elaboradas, e os homens, de smoking ou camisas pólo de grife. Claro que aqui e ali surgia um sujeito vestido de índio, pirata, mexicano, árabe, legionário, arlequim ou pierrô, mas eram uma minoria. Quem tinha obrigação de vender beleza era o mulherio.

Nos bairros, a população se divertia nos bailes carnavalescos dos clubes amadores ali existentes e nas sedes de associações sindicais e de times profissionais populares. Em Educandos, por exemplo, na União Esportiva de Constantinopla e no Círculo Operário. Na Cachoeirinha, no Ipiranga, Botafogo e Cachoeirinha. No Morro da Liberdade, no Libermorro e Olaria. No Seringal Mirim, no Internacional (“Baile da Jardineira”). Em São Raimundo, nas sedes do São Raimundo e Sul América, e assim por diante. Havia ainda os clubes de campo, de freqüência mista (Sírio-Libanês, Caiçara, Cetur, Asa, Municipal, Beasa, Cassam, AABB, etc), que também realizavam bailes inesquecíveis.

Guardada as devidas proporções, o esquema nos bailes carnavalescos, tanto dos chamados “bailes de elite” quanto dos chamados “bailes populares”, seguia uma mesma dinâmica. Uma orquestra de metais (nome genérico dos instrumentos de sopro feito de metais), posicionada no fundo do palco, iniciava a fuzarca, na maioria das vezes, com a música “Ô Abre Alas”, aquele clássico da Chiquinha Gonzaga (“Ô abre alas, que eu quero passar/ Ô abre alas, que eu quero passar/ Eu sou da Lira, não posso negar/ Rosa de Ouro é quem vai ganhar”).

Essa era a senha para as pessoas invadirem o salão abraçado em dupla, trinca, quarteto ou até mesmo sozinhas. O cortejo dos foliões consistia em uma movimentação em círculo, obedecendo ao sentido horário – mas também havia alguns sujeitos cheios da truaca, que preferiam brincar no sentido anti-horário, o que era sinônimo de confusão.

As garotas desacompanhadas ficavam nas bordas do salão, observando aquela alegre confusão. De repente, uma mão saindo do meio da turba lhe alcançava o pulso e a puxava para o salão. Se houvesse interesse recíproco, a foliona enganchava no sujeito e ia pra guerra. Se não, ela dava um jeito de liberar o pulso das mãos do fariseu. Essas efêmeras conquistas carnavalescas se constituíam na glória (ou calvário) de qualquer moleque que buscava as folias de Momo.

O cortejo, evidentemente, se movimentava no salão de acordo com a música. Havia as marchinhas para uma evolução rápida – leia-se correria desenfreada e trombadas entre os participantes –, como “Marcha do Remador” (“Se a canoa não virar, olé, olé, olá/ Eu chego lá”), “Turma do Funil” (“Chegou a Turma do Funil/ Todo mundo bebe/ Mas ninguém dorme no ponto”), “Alalaô” (“Alalaô ô ô ô/ Mas que calor ô ô ô/ Atravessamos o deserto do Saara/ O sol estava ardente e queimou a nossa cara”) e a mais frenética de todas, que costumava causar quedas coletivas no salão, “Corre, corre, lambretinha” (“O vovô ia a cavalo/ Para visitar vovó/ O papai de bicicleta/ Pra ver mamãe, ora vejam só!/ Hoje tudo está mudado/ Mudou tudo, sim senhor/ E eu tenho uma lambreta/ Para ver o meu amor/ Corre, corre, lambretinha/ Pela estrada além/ Corre, corre, lambretinha/ Que eu vou ver meu bem”).

Havia as marchinhas para uma evolução devagar, quase parando – e aí os arranjos mistos de trincas, quartetos, quintetos ou sextetos davam vez para os casais. Quem ainda não estivesse descolado um par precisava correr contra o relógio, porque essas marchinhas começavam a ser tocadas na metade do baile. A mais clássica de todas era aquela criação genial de Zé Kéti, “Máscara Negra” (“Tanto riso, oh/ Quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/ No meio da multidão/ Foi bom te ver outra vez/ Tá fazendo um ano/ Foi no carnaval que passou/ Eu sou aquele Pierrô/ Que te abraçou/ Que te beijou, meu amor/ A mesma máscara negra/ Que esconde o teu rosto/ Eu quero matar a saudade/ Vou beijar-te agora/ Não me leve a mal/ Hoje é carnaval/ Vou beijar-te agora/ Não me leve a mal/ Hoje á carnaval”). Era a senha para beijar a foliona recém-conquistada. Se houvesse correspondência, o sujeito havia ganhado a noite. Se não, não.

Se tudo tivesse dado certo na etapa anterior (a garota não só consentira no beijo, como abrira levemente os lábios para você introduzir a língua), a próxima fase era levá-la para uma parte mais escura do clube, normalmente em corredores longes do salão, e iniciar a sessão de “acocho” (era esse o nome do moderno “amasso”, na época), que consistia de beijos e abraços apertados. Só isso. As mais liberais ainda permitiam algumas alisadas nas coxas e alguns toques, discretos, no sutiã de cetim. Avançar mais do que isso era convite certo para uma tapa na cara e o fim do, digamos assim, relacionamento casual.

Os casais voltavam para o salão quando o baile já estava acabando. Os primeiros acordes de “Está chegando a hora” (“Quem parte/ Leva saudades/ De alguém/ Que fica chorando de dor/ Por isso eu não quero lembrar / Quando partiu / Meu grande amor/ Ai ai ai ai/ Está chegando a hora/ O dia já vem raiando meu bem/ E eu tenho que ir embora”), sinalizavam para os últimos beijos, abraços apertados e as juras de amor eterno. Pura balela. Na maioria das vezes, nem se sabia o nome da garota. E a possibilidade de encontrá-la novamente era tão difícil quanto acertar na megasena acumulada.

No dia seguinte, após a ressaca carnavalesca, a turma de moleques se reunia para contar vantagens sobre as conquistas efetuadas e fazer planos para os bailes do ano seguinte. Só cascata, evidentemente, ninguém tinha “ficado” com ninguém. Aqueles beijinhos pueris eram somente isso, beijinhos pueris. Mas aos 14 anos, com os hormônios à flor da pele, a mentira é a nossa mais perfeita aliada. E não deixava de ser um bom aprendizado para a idade adulta...

Algumas vezes, se o sujeito tivesse uma sorte de mulher da bunda grande, ele era bem capaz de encontrar sua velha paixão passada em um novo baile de carnaval, no ano seguinte. Se ela estivesse com a mesma fantasia do ano passado, então, era sopa no mel. A deixa era esperar a bandinha enfiar os primeiros acordes da música abaixo e correr pra galera, digo, pra garota. Podia dar certo.
– Quem é você?
– Adivinha se gosta de mim...
Hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim:
– Quem é você, diga logo...
– ... que eu quero saber o seu jogo
– ... que eu quero morrer no seu bloco...
– ... que eu quero me arder no seu fogo
– Eu sou seresteiro, poeta e cantor
– O meu tempo inteiro, só zombo do amor
– Eu tenho um pandeiro
– Só quero um violão
– Eu nado em dinheiro
– Não tenho um tostão... Fui porta-estandarte, não sei mais dançar
– Eu, modéstia à parte, nasci pra sambar
– Eu sou tão menina...
– Meu tempo passou...
– Eu sou colombina!
– Eu sou um pierrô!

Mas é carnaval, não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar
Que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Seja você quem for, seja o que Deus quiser


*O Simão Pessoa é meu brother, blogueiro da net, endereço http://www.simaopessoa.blogspot.com/  – assim de autodefine: canalha exemplar, pai extremado, irmão zeloso, amigo fiel, amante de que ama, consumidor de quelônios, colecionador de discos (só samba do bom e blues tocado por negro, além de clássicos do rock, do reggae e do funk), ex-quarto zagueiro dos imbatíveis Murrinhas do Egito e Setembro Negro, hoje obeso, colecionador de gibis do Asterix, vascaíno em tempo integral.

Um comentário:

A.M. Consultoria disse...

Não sou desta década, mais consigo reviver com a mesma intensidade tais emoções.
Carnaval só é lindo se participado com responsabilidade e diversão. Brincadeira sadia que nos eleva a estima e a alegria de ser um folião.
Com paz no coração e boas intenções, conseguimos brincar nosso carnaval, mesmo nessa década com valores mudados e conturbados.

Feliz festa "nossa" e do rei Momo.