sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

O SACI DA PARECA

 



José Rocha

O Saci é uma das entidades fantásticas mais populares do Brasil, um menino negro de uma perna só, que fuma cachimbo e usa um gorro vermelho. Segundo a crença popular, ele é muito travesso e gosta de pregar peças nos viajantes, armando ciladas pelo caminho. Mas o nosso Saci da Pareca não é assim. Ele ganhou esse apelido desde pequeno, porque também era negro, adorava usar um macacão vermelho e morava no bairro de Aparecida, conhecido carinhosamente como Pareca pelos seus moradores.

O nosso Saci nunca gostou de perseguir ou enganar ninguém, mas era um menino levado, que jogava peteca e não podia ser sacristão, porque era levado da breca, como dizia o compositor e cantor amazonense Carapeta. Ele aprontou muito na infância, na adolescência, na vida adulta e até na velhice, mas sempre dentro dos limites de um saci.

Ele nasceu em uma casa flutuante que ficava perto do bairro e, como era de uma família muito pobre, a sua mãe biológica o deixou com um casal que morava na Bandeira Branca, abandonando-o para sempre. Ele foi batizado como José e registrado no cartório como José Raimundo de Souza. Ele se tornou o caçula dos cinco irmãos, filhos de uma mãe capixaba e de um pai cearense. Um dos seus irmãos era o empresário Zezinho da Casanova, um ex-jogador de futebol que virou dono de uma loja de roupas masculinas, famosa nas décadas de 70 e 80, na Avenida Eduardo Ribeiro.

O seu bairro era o berço de muitos historiadores, poetas, sambistas e católicos fervorosos. Ficava na zona sul e era um dos mais antigos de Manaus. Lá também ficavam a Cervejaria Amazonense e a Fábrica de Gelo Cristal, dos Miranda Corrêa. Tudo a ver com o Saci da Pareca.

Ele frequentava desde cedo a Igreja de Nossa Senhora de Aparecida, principalmente as novenas das terças-feiras e as missas dos domingos. Ele brincava de futebol no campo do Colégio Dom Bosco. Ajudava o seu pai adotivo em uma pequena taberna que vendia farinhas e legumes. Foi lá que ele começou a batucar no balcão e a se interessar pela música.

Quando ficou mais velho, ele participava das rodas de samba que aconteciam no antigo Largo da Bandeira Branca, um ponto de encontro de boêmios, sambistas e palco dos principais eventos culturais do bairro.

Ele era esquentado desde novinho, não aceitava desaforos, brigava com os colegas do bairro e vivia em atrito com os moleques dos bairros de São Raimundo e da Matinha. Era normal naquela época, quando Manaus terminava no bairro de Flores, e os jovens tinham rixas com os das redondezas. As brigas eram no mano a mano, sem armas brancas ou de fogo.

No campo profissional, ele fez de tudo um pouco. Trabalhou muito nos depósitos das Lojas Americanas e da Bemol e em uma empresa que ficava em um flutuante no meio do Rio Negro, que prestava serviços para a Refinaria de Manaus. Ele também comercializou por muito tempo os famosos e proibidos “bicho de casco” (Tartarugas e Tracajás) e seus ovos, muito apreciados pelos manauaras da época, sempre dando um jeitinho brasileiro para driblar a fiscalização das autoridades.

Foi proprietário do “Sacy Bar”, um boteco situado na Rua Ramos Ferreira, próximo à sede do Rio Negro Atlético Clube. O lugar era muito frequentado pelos sambistas do bairro, pela turma do Partido dos Trabalhadores, artistas e boêmios do centro da cidade. A casa ficava cheia todos os finais de semana, pois rolava muito samba de raiz (tocados em aparelhos 3 em 1, com discos de vinil e fitas cassetes), com muito caranguejo no toque-toque. Ele servia aos clientes, gratuitamente, algumas porções de camarões, além de ter uma cerveja estupidamente gelada, tipo “véu de noiva”.

Quando alguém pedia para ele colocar uma fita cassete, caso fosse um som no estilo da banda “Pink Floyd”, ele cuspia fogo e expulsava o freguês na hora. Não gostava nem um pouco de rock, achava que era coisa de maconheiro. Dizem alguns frequentadores antigos que o Sacy era um “cara de lua”, instável. Podia passar a noite sorrindo, mas, de repente, fechava o tempo.

Orgulhava-se de ter tido como cliente famoso o saudoso Josué Cláudio de Souza (Pai), o fundador da Rádio Difusora do Amazonas e prefeito de Manaus. Ele aparecia por lá para tomar umas cervejas e comprar camarão da melhor qualidade. Quem ia buscá-lo era a sua filha, a inesquecível radialista Fezinha Anzoategui.

Depois de alguns anos movimentando o seu boteco, teve um problema muito sério com um cliente e vizinho. Foi xingado e ameaçado, culminando com uma briga fatal. Foi obrigado, em seguida, a fechar para sempre o seu estabelecimento.

Foram anos difíceis para o Saci, inclusive, teve que passar por tratamentos psicológicos para esquecer aquela cena fatídica que aconteceu no seu bar. Para dizer a verdade, ele ainda sente muito o que aconteceu naquele dia. Para superar esse trauma e sobreviver, buscou na música um escape e o conforto espiritual, frequentando com mais assiduidade a igreja do bairro.

No carnaval, gostava de frequentar os ensaios da sua escola de samba do coração, a Mocidade Independente de Aparecida (a Pareca). Quando era possível, desfilava garbosamente no Sambódromo. Também adorava as apresentações dos bois de Parintins, viajando todo ano para a Ilha de Tupinabarana, para torcer pelo seu boi preferido, o Garantido. Por ser católico fervoroso, fazia de tudo para participar do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, onde segurava a corda em todo o seu trajeto e aproveitava para “bater com força” no Pato no Tucupi e na Maniçoba.

Por ser um exímio percussionista, sempre saía de casa com uma sacola surrada, cheia de instrumentos musicais (agogô, reco-reco, triângulo e tamborim). Fazia apresentações de forma descompromissada nos botequins de Manaus, principalmente no Bar Caldeira, Bar do Armando, Bar dos Cornos, ET Bar, Bar do Cipriano e no Bar do Metal. Era muito aplaudido pela sua forma diferente de tocar e de rebolar, um tanto sensual.

Certa vez, ele resolveu passar pelo baixo meretrício da Rua Mauá, no centro antigo de Manaus. Parou numa barraca de churrasquinho de gato, deixando no chão a sua sacola de instrumentos, e saboreou um miau da melhor qualidade. Um larápio, percebendo o descuido do Saci, levou todas as suas ferramentas de trabalho. Ele chorou que nem um bezerro desmamado. Muitas pessoas foram solidárias e fizeram uma cota para a compra de novos instrumentos. Ele ainda gosta de comer um churrasquinho de bichano, mas com um olho no gato e o outro na sua bolsa.

Por essas e por outras, ele se tornou um cara folclórico na nossa cidade. Quando alguém pergunta o porquê do apelido Saci, ele responde:

• Sou um Saci diferente, tenho duas pernas, porém, uma é morta! - referindo-se ao seu bilau.

Quando chega aos botecos, depois de tomar várias e diversas, ele fica nostálgico. Gosta de lembrar o passado, sempre cita o Peteleco & Oscarino; do Boi Brinquedinho (do saudoso Festival Folclórico dParte superior do formulárioParte inferior do formulárioo General Osório), onde foi “tripa” (aquele cara que dança embaixo do boi); das Pastorinhas do Luso e dos causos interioranos:

- Peteleco, quantas partes se dividem o corpo humano? - pergunta o Oscarino.

- Depende das porradas que o caboclo tomar! - responde o Peteleco, rindo das próprias piadas.

- Peteleco, como se diz noventa e nove em japonês?

- Quazixém! - repete ele, sem perder a graça.

- Ei, meu boi! Vem pra cá! Vem dançar. Que a festa já vai começar! Ei, Boi! - canta em voz alta e começa a dançar a toada antiga.

- Rocha, filho do Cão do Luso! - faz sempre esta saudação ao me encontrar e ao meu irmão, pois ele sabe que fomos ajudante do Cão (o Lapinha), o satanás de uma famosa pastorinha (peça teatral) que acontecia no Luso Sporting Club.

- Alô, Dona Maria, do Lago do Limão, o seu marido mandou avisar que vai demorar a chegar, pois um tronco atravessou bem na boca do Lago do Periquito. Assim que o tronco sair, o barco vai continuar a viagem. Abraços e beijos, Afonso! - conta com sorrisos esse aviso interiorano.

O Saci tem família, um casal de filhos e faz bastante tempo que está separado da mulher, apesar de morarem no mesmo teto (isso é normal para muitos casais). Ele adora um “rabo de saia”. Certa vez, arranjou uma namorada com mais de oitenta anos, a quem chamava de “Minha Sincera”. A velha era rica, gostava muito da noite e bancava tudo. Com o passar do tempo, ela deu um fora no Saci, arranjou um rapaz “sarado” que tinha idade para ser seu bisneto. O pobre do Saci chegou até a ameaçar pular, na vazante, da Ponte Fábio Lucena (que liga os bairros de Aparecida ao São Raimundo) caso ela não voltasse para os seus braços. Tudo em vão!

O tempo foi um santo remédio para ele esquecer a vovozinha. Arranjou, tempo depois, outra namorada, uma coroa fogosa, cheia de dengos, “biriteira” de mão cheia e frequentadora assídua dos botecos dançantes de Manaus. Ele gostava de chamá-la de “Amorzinho”.

Algumas pessoas dizem, eu não sei e também não posso afirmar que, a dita cuja colocava um par de chifres no coitado. Só sei que, de vez em quando, ele ficava chorando pelas mesas dos bares, lamentando o abandono por parte de sua amada. Pouquíssimas vezes o via feliz com ela. As pessoas dizem que isso acontecia somente quando ele estava com “bala na agulha”, momento em que ela usava e abusava do Saci, largando-o somente quando ficava na pindaíba.

O Saci cansou dessa situação e partiu para uma nova conquista. Afinal, ele se apaixona facilmente e sempre desejava encontrar uma mulher que o respeitasse e que fose decente. Espero que ele tenha sucesso nessa busca.

O nosso Saci da Pareca é aposentado e ganha pouco. Ele luta para sobreviver, por um tempo vendia produtos típicos da região, como camarão seco, guaraná em pó, filé de pirarucu, copaíba e mel. Mas ele também faz o que mais gosta: tocar os seus instrumentos musicais, beber nos botecos de Manaus, namorar as suas “sinceras e amorzinhos” da vida, rezar nas igrejas de Aparecida e São Sebastião, curtir o seu Boi Garantido em Parintins e o Círio de Nazaré em Belém.

O tempo passa e o Saci está envelhecendo, deixou um pouco de tocar nos botecos de Manaus, no entanto, bate o ponto direto na “Segunda Sem Lei” do Bar Caldeira, do centro da cidade.

 

Ele sonha ainda em reabrir o seu famoso “Saci Bar”, onde venderia a sua cerveja e camarão, e continuar a vida, aprontando de vez em quando, como o Saci do nosso folclore.

É isso aí.

Fotografia: José Rocha, em Parintins, Amazonas.