domingo, 7 de janeiro de 2024

NOSSA CASA ALUGADA NA RUA TARUMÃ

 


Foto: Terreno aonde ficava a nossa casa alugada. José Rocha

José Rocha

Há alguns meses, o meu amigo Aristophano Antony compartilhou uma fotografia da Rua Tarumã da década de 50 e fez alguns comentários nostálgicos. Aquela imagem me transportou para o passado e me fez reviver as lembranças da época em que vivi com minha família naquela rua do bairro da Praça 14 de Janeiro.

Era o começo do ano de 1960, quando parte de nossa família deixou o Igarapé de Manaus e se mudou para a Rua Tarumã. Por lá ficaram o meu pai, minha avó e o meu irmão Rocha Filho, que preferiram continuar perto da Oficina de Violões de meu pai e do colégio de meu irmão. Aqui vieram morar a minha mãe, eu, o meu irmão Henrique e a minha irmã Graciete. A minha meia-irmã Kelva foi passar uma temporada no Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa.

O velho só vinha nos ver nos finais de semana e o meu irmão Rocha aparecia quase todo dia para matar a saudade e voltava. A nossa casa nova ficava entre as ruas Apurinã e Afonso Pena, do lado direito de quem desce em direção à Rua Major Gabriel. Era um imóvel alugado de um senhor espanhol que morava perto de nossa casa. Ele era muito severo e exigente com o aluguel.

Era uma casa simples, com a frente para a rua, mas no fundo havia uma depressão, que existe até hoje. Tinha um grande quintal e um porão bem alto. Havia muitas árvores frutíferas, mas eu só me lembro de um abacateiro, que dava uns abacates enormes e saborosos. O dono não permitia que a gente pegasse nenhum, mas minha mãe, ainda jovem e ágil, subia na árvore para colher os frutos. Ela fazia umas vitaminas deliciosas com leite e açúcar.

Na parte de trás, onde é hoje um residencial do Prosamim, havia uma pequena mata que ia até uma continuação da Rua Dr. Machado, na verdade um beco que saía na Rua Major Gabriel. Como eu era muito pequeno, com a idade do meu neto Matheus, eu tinha muito medo daquele lugar, mas às vezes eu me aventurava para mexer nos ninhos dos passarinhos. Eu gostava de ver os filhotes piando e esperando a comida dos pais.

A molecada jogava bola na rua, mas quando o chute era forte, a bola caía dentro do nosso terreno. Como nós criávamos um cachorro bravio, o Duque, eles tinham que usar um truque para pegar a bola de volta. Eles colocavam um anão dentro do esgoto de águas pluviais e ele saía no fundo do nosso quintal. Num descuido do canino, ele pegava a bola e voltava pelo mesmo caminho, onde os maiores puxavam o dito anão para a rua. Era uma cena engraçada de ver.

Embaixo de nossa casa havia uma fossa biológica, uma alternativa sustentável e eficiente para o descarte de dejetos humanos, muito utilizada nas casas de antigamente e ainda muito usada no meio rural. Pois bem, certa vez, a minha mãe e minha irmã saíram e eu e meu irmão ficamos sob a guarda de uma vizinha. Ela simplesmente me deixou correndo pelo quintal e, pasmem, eu caí dentro da fossa, sendo retirado pelos cabelos. Foi um horror. Ela me deu vários banhos, me lavou com sabão, sabonete, esfregou e até colocou perfume para tirar aquele fedor que parecia que tinha entrado até na alma. Quando minha mãe chegou, sentiu logo o cheiro e me deu umas palmadas para eu contar o que aconteceu. Fiquei de castigo por um bom tempo, sendo proibido de brincar no quintal.

O nosso cachorro Duque pegou a hidrofobia (causada pelo vírus da raiva, muito rara nos dias atuais). Naquela época, chamávamos de “cachorro doido”. Ele mordeu a mamãe e a minha irmã, que tiveram de tomar vinte injeções doloridas na barriga. O meu pai resolveu matá-lo, mas o cachorro o reconheceu e começou a chorar nos seus pés. O velho, também, se emocionou e começou a chorar. Foi uma cena triste. Ele desistiu do intento e o Duque morreu com a doença.

Próxima à nossa casa havia uma padaria que nós sabíamos quando o pão estava para sair, pois aparecia uma fumaça na chaminé e exalava um cheiro gostoso de pão assado em forno a lenha. O meu pão preferido era um feito de milho. Era uma delícia, macio e quentinho. Até os dias atuais, não encontrei um outro igual àquele pão da padaria da minha infância.

Lembro-me com saudade de um senhor que fazia embutidos frescos como as linguiças. Eu era apenas um curumim, mas ficava fascinado em ver ele produzir tal alimento, principalmente quando eram embutidos em tripas naturais, que exalavam um aroma peculiar e a minha mãe adorava comprar esse produto. Neste local morava um rapaz que eu acho que tinha algum problema mental, todos os garotos caçoavam dele, praticavam o cruel bullying verbal, eu tinha medo dele, pois ele corria atrás das pessoas e atirava pedras naqueles que o provocavam.

No dia em que fiz cinco anos, recebi um presente inesquecível da minha madrinha: um anel de ouro que brilhava como o sol. Era o meu tesouro mais precioso, e eu o usava com orgulho e carinho. Com o passar do tempo, o anel foi ficando apertado no meu dedo, mas eu não queria me separar dele. Meu pai, então, levou-o a um ourives, que o alargou com cuidado e habilidade. Assim, eu pude continuar a usar o meu anel, até que um dia, por uma triste necessidade, ele teve que ser derretido e vendido. Nunca me esqueci daquele anel, que marcou a minha infância com amor e alegria.

Na minha infância, havia dois bares perto de casa: o Bar do Sêo Neco e o Barbante. Eram lugares simples, mas cheios de vida e alegria. Meu pai adorava tomar uns aperitivos por lá, conversar com os amigos e contar histórias. Ele era muito próximo do Nestor Nascimento, o fundador do MOAN - Movimento Alma Negra. O Nestor era um jovem de 18 anos, mas já tinha uma voz poderosa e uma consciência social. Os dois compartilhavam ideias e sonhos nesses botecos, regados a cerveja e música.

Após dois anos de aventuras e descobertas, chegou a hora de nos despedirmos da Rua Tarumã. Os meus pais decidiram retornar para a nossa antiga casa, mas eu sabia que aquele lugar mágico jamais sairia do meu coração. As lembranças dos amigos, dos animais, das cores e dos sons ficaram gravadas para sempre na minha memória.

Hoje, depois de tantos anos, eu e meus irmãos ainda sentimos saudade daqueles tempos. Gostamos de passear pela Rua Tarumã, visitar a Escola de Samba Vitória-Régia e o Quilombo de São Benedito, pois também fomos moradores da Praça 14 de Janeiro, o Berço do Samba. Ali, aprendemos a valorizar a nossa cultura, a nossa história e a nossa gente. 

É isso aí.


Fotos: José Rocha