Trecho extraído do livro “No trilho do Tempo: memórias”, Lucena,
Armando. Manaus – AM: Editora Belvedere, 2007”.
A
Crítica
Manaus,
segunda-feira, 8 de Dezembro de 1980
O
motorista Armando Lucena, um dos líderes de sua classe, que teve seu carro
destruído por uma viatura policial, endereçou ao diretor deste jornal,
jornalista Umberto Calderaro Filho, a seguinte carta:
“Com a humildade que tem
caracterizado minha vida, é que chego a vossa presença para pedir espaço em seu
prestigioso jornal para a publicação, na íntegra, desta carta que, em última
análise, é um grito de protesto. Grito que, posso afirmar a V.Sª, ecoará como
se partido fosse de dezenas e dezenas de pessoas e famílias que já se viram nas
mesmas ou em mais graves contingências. Inicialmente afirmo a V. Sª que a
verdade sobre a versão do fato que narrarei só pode ser contestada com o uso da
mentira e do cinismo ou usando indevidamente o nome da Lei”.
Vamos aos fatos:
Domingo, 4 de novembro de 1979, mais ou menos às 13 horas saí para trabalhar no
táxi ZA-3306. Era mais um dia na rotina ao longo de 12 anos. Com a velocidade
moderada, como de costume, conduzia um passageiro pela Avenida Costa e Silva
com destino ao bairro da Raiz. Com o sinal aberto para mim, no cruzamento com a
Rua Borba. De súbito, pelo esquerdo, uma sirene foi ligada. Rápido levantei a
vista e vi aproximar-se com fúria diabólica um carro grande. Ele já estava
sobre mim. Lembro-me do único pensamento que antecedeu o impacto: Meu Deus! Vou
morrer! Depois a inconsciência. Vozes. Alguém me conduzia no braço como seu eu
fosse uma criança. Dores terríveis não me deixaram respirar. Com um saldo de
seis costelas fraturadas e o pulmão esquerdo atingido, lutei e escapei da morte
graças a uma equipe de competentes e dedicados médicos. Já bem melhor, é que
soube detalhes do acidente: o carro que me atingira era um carro “tumba”, da
Polícia Civil, ou seja, do Instituto Médico Legal. Um Chevrolet placa ZO-2041,
que jogara meu veículo a longa distância sobre outro da empresa “Ferreira”, e
que, com a violência do impacto, o carro tumba rodopiou ficando de frente para
o local de onde vinha. O motorista causador do acidente não me prestou
assistência.
Dias depois, ao deixar o
hospital, recebi o laudo pericial e com ele em mãos solicitei uma audiência com
o secretário de Segurança com a finalidade de propor um acordo. Fui recebido
pelo subsecretario que delicadamente explicou-me não ser possível minha
pretensão já que a Secretaria não dispunha de verbas, deixando claro que só a
justiça podia determinar esse tipo de pagamento.
Daí começou minha
andança pelos gabinetes de alguns advogados que prometeram trabalhar no caso,
mas, tempos depois, devolviam os documentos que jamais haviam saído de suas
gavetas. Eu não dispunha de dinheiro para as custas. Finalmente, meses depois,
os papéis chegaram às mãos da competente e dedicada Drª Silvia Maria Abensur
Santos que, com franqueza, disse-me o que era necessário fazer para que o
processo fosse em frente. Preenchidas todas as lacunas, foi marcada a primeira
audiência para o dia 7 de outubro de 1980, quase um ano depois do acidente. Era
o dia ansiosamente esperado.
Eu estava certo que tudo
ia correr bem, pois podia testemunhar que o carro “tumba” avançara o sinal e só
ligara a sirene muito próximo; que vinha com velocidade incompatível com o
local e a segurança do trânsito (conforme laudo); que de acordo com o horário
(13h45min), mesmo para ir buscar um cadáver (conforme afirmara o motorista
responsável pelo acidente), não precisaria tanta pressa, já que os cemitérios
só fecham os portões às 18 horas. Finalmente, como não há “emergência” para
carro tumba, acreditava em uma solução amigável, isto é, uma proposta por parte
do representante do Estado, que certamente seria aceita e eu sairia da longa
crise.
Finalmente, às 9h30min
do dia 7 de outubro de 1980, estávamos na sala de audiência na 14ª Vara Cível,
em frente ao advogado que representava o Estado. Empavonado, bem vestido, bem
nutrido e bem falante, agiu como se estivesse em jogo a própria segurança do
Estado e ele o único defensor intransigente do “DIREITO” e da “JUSTIÇA” . Pela preciosidade do espaço deste jornal
deixo de entrar em detalhes.
Amargurado, sai daquela
audiência. Minha advogada continuou trabalhando e assim é que nova audiência
foi marcada para o dia 28 de novembro de 1980, para a mesma 14ª Vara Cívil, já
com seu titular. A juíza substituta, que havia presidido a primeira audiência,
fora impugnada pelo advogado e por isso se considerou impedida. Entretanto, ao
chegar ao Tribunal minha advogada comunicou o adiamento da audiência, em
virtude de que o processo havia sido “agravado” pelo advogado do Estado. Sou um
leigo, entretanto, lendo tal documento senti que era uma espécie de impugnação
a decisão do juiz titular daquela Vara, ou, pelo menos, algo visando dificultar
a ação do magistrado, uma espécie de entrava, já que se referia a um despacho
daquele juiz.
Conversando com pessoas
insuspeitas e profundos conhecedores da Lei, ouvi palavras que me deixaram mais
ferido que naquele dia 4 de novembro. Porque este deferimento atinge a alma, já
que nos leva à descrença. E a crença é a última coisa que o homem devia perder.
Em resumo, disseram-me: Um advogado como este, ávido de prestígio e promoções,
vai continuar por tempo indeterminado criando toda série de dificuldades e
embaraços. Agravando e impugnando, enfim, vai usar todas as formas de
artimanhas para que a parte queixosa tenha razão, não possa resistir uma ação
tão prolongada contra o Estado.
O Estado está ai,
corrupto e corruptor, dando aos seus apaziguados o conforto das mordomias,
enquanto nega a um operário do volante a indenização justa de um instrumento de
trabalho destroçada pelo próprio Estado. Talvez o vaso sanitário onde se
acomode as gordas nádegas de algum secretário do governo tenha custado aos
cofres públicos mais que custaria a reforma do táxi ZA-3306.
Durante todo esse tempo
eu não pedi favores, pedi justiça, daí porque estou na estaca “Zero” – “Se você
não fosse tão burro e tão casmurro, seu problema já teria sido resolvido” –
disse-me um cidadão, que completou. “Era só entrar para o PSD, partido do
governo”.
Não sei até quando
resistirei, já que até desistir é perigoso, pois teria de pagar as custas do
processo e, para isso, mesmo vendendo a sucata do meu carro, já completamente
apodrecido, não conseguiria a importância necessária.
Encerrando, afirmo que
em minha mesa pobre nunca havia faltado pão, mas agora está faltando tudo. Em
meus quase sessenta anos só me resta amaldiçoar aqueles que contribuíram para
que isso acontecesse.
Que os leitores me
perdoem o desabafo”.
O resultado não se fez por esperar, foi um corre-corre. O advogado do
governo procurou minha advogada que me chamou para um acordo. Pagariam-me
imediatamente o valor do carro, se eu desistisse da ação de cobrança das
diárias, ou seja, do lucro cessante, que durante mais de um ano daria muito
dinheiro. Aceitei a proposta, estava ansioso para voltar a trabalhar. Em menos
de uma semana recebi o dinheiro e em poucos dias estava na rua dirigindo o meu táxi.
Fiz uma postagem sobre esse guerreiro: http://jmartinsrocha.blogspot.com.br/2012/08/armando-lucena-o-persistente.html
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