Uma das praças de Manaus
que o Zé mais gosta, para passear e encontrar os amigos para o bate papo, é a Praça
Heliodoro Balbi (em homenagem ao advogado, político, professor e fundador da
Academia Amazonense de Letras), conhecida também como Praça da Polícia (em
decorrência da instalação da corporação militar no Palacete Provincial). Nela
existe um belíssimo coreto em arquitetura art nouveau, construído com as
colunas advindas do Teatro Amazonas. Ali, na sua infância, Zé assistia aos
domingos a retreta da banda de música da Polícia Militar. A rodada de bate-papo
com amigos e intelectuais geralmente acontece no Café do Pina e,
esporadicamente, num banco bem embaixo de linda e imensa árvore, conhecida por
mulateiro. Trata-se do local de encontro dos membros do movimento cultural e
literário de renovação das letras, conhecido por Clube da Madrugada. O Café do
Pina, antigo Pavilhão São Jorge, está localizado dentro do complexo da praça,
mas seu lugar original ficava na rua Floriano Peixoto, bem em frente ao Cine Guarany.
Zé frequentava aquele lugar desde sua infância, pois, ao sair do cinema,
adorava tomar uma média (café com leite e pão com manteiga) e, admirar o
proprietário, senhor Pina, um português que tratava todas as pessoas,
independente de idade, com a saudação carinhosa “alô jovem!”. No espaço atual,
conhecido popularmente como Republica Livre do Pina, gosta de tomar um
“pingado” aos sábados e jogar conversa fora.
Um dia, sentou-se na escada da
Rotunda (monumento circular, construído pelo prefeito Araújo Lima, em 1929),
quando apareceu seu amigo do peito, Bené Sonson, um sujeito que, quando toma
“umas e outras”, gosta de ouvir somente músicas das antigas do “Reiberto”, e
fica o tempo todo reproduzindo o chavão: – Sou o Bené, caboco de Maués! Me
respeite! O cabrito quando é bom, não berra! Será que ela é a bacana? Nesse
encontro, ele estava com aquele “bafo de cevada” e resolveu torrar a paciência
do amigo: – Meu compadre, eu te conheço faz um tempão, mas, me diz uma coisa,
por que o teu apelido é Zé Mundão? Começou o Zé: – É um apelido de infância, eu
gostava de girar um globo de plástico e falava o tempo todo que iria conhecer o
mundo inteiro! Para Zé Mundão foi um pulo. – E ai, quantos países o amigo
conheceu? – Nenhum! Praticamente não saí de Manaus toda minha vida! Conheço
apenas o Rio de Janeiro e algumas cidades do nosso interior. – Poxa, então o
apelido deve ser mudado para Zé Manaus! Só vou te chamar assim de agora em
diante! Explicou Mundão: – Acho muito difícil mudar agora, Sonson, pois apelido
quando pega, não tem sacristão que mude! – Meu compadre, por falar em interior,
estou indo para Maués no próximo final de semana para a Festa do Guaraná. Vamos
nessa? O barco sai à noite de sexta-feira lá do rodo, convidou o amigo. – Tô
dentro, Sonson! Na sexta vou te aguardar no porto às seis, acertou o Zé. –
Combinado, Zé Mundão, digo, Zé Manaus! Hehehehehe!
Conforme o combinado, o
Zé se mandou para o roadway (o cais flutuante construído pelos ingleses no
início do século passado), comprou sua passagem para um barco regional
(fabricado de madeira). Seu cicerone, Sonson, não deu o ar da graça, e Zé, como
já estava com a passagem comprada, resolveu viajar sozinho sem eira, nem beira
para Maués. Este município fica a 367 quilômetros de Manaus, no Médio Amazonas,
entre os rios Madeira e Tapajós, conhecido nacionalmente como “A terra do
guaraná”. Seu nome é uma homenagem à nação Maué (tupi = papagaio curioso e
falante), e o turismo é muito forte naquela região, em decorrência das belas
praias e da realização da Festa do Guaraná e do Festival de Verão.
O barco
estava lotado, o único local que o viajante encontrou para armar sua rede foi
em frente ao pequeno boteco, onde o movimento de pessoas era intenso. Seu dono
colocou uma caixa de som amplificada bem ao lado da rede do Zé, que não
conseguia dormir. O único jeito foi enrolá-la numa viga do barco. E dá um tempo
no boteco, e toma uma aqui, outra acolá, o tempo foi passando e todos falando
alto, rapidinho se faz amizades. O Zé conheceu um sujeito por nome de Gondinho,
natural de Maués, que fazia anos não ia a sua terrinha. Ele estava acompanhado
do filho, Coroinha, jovem católico, apostólico e romano, além de beldades, duas
colegas de trabalho. Fez amizade também com um cara que era o Padeiro (dono de
duas padarias em Manaus) e mais quatro pinguços da melhor qualidade. Lá pelas
tantas, o Padeiro fez a seguinte declaração: – Fiz a maior leseira! Amanhã será
meu aniversário, passei a tarde toda tomando umas e outras lá no bar Caldeira,
quando senti a maior saudade da minha terra Maués. Fui para o rodo e entrei no
barco com a roupa do corpo, nada avisei para minha família, vai ter uma
feijoada amanhã para os convidados lá em casa, como é que eu vou explicar essa
minha loucura? O Zé logo procurou consolar o camarada: – Agora não vai dá para
consertar nada, estamos navegando a noite no meio da maior floresta do mundo, a
única solução será você ligar para a tua família quando chegarmos a Maués e
pegar o primeiro avião para Manaus! Por ora, é melhor beber e esquecer.
A
viagem transcorria numa boa, muito forró/brega, com as beldades mostrando
aquele visual, o Gondinho contando piadas e o Coroinha enchendo o saco de todo
mundo, falando somente de religião. Depois de meia-noite, o Zé Mundão resolveu
dormir. Quando chegou ao seu lugar, os pinguços estavam jogando dominó bem
embaixo da sua rede, teve que aguentar um bom bocado aquela zoada de pedras na
mesa, além daqueles comentários: – Até que enfim tu jogaste a carroça de sena!
Gato, não, papai! Capote! Tu fechaste meu jogo, anta! Uma hora depois, a
paciência do Zé chegou ao limite máximo, deu uma bicuda na mesa de dominó,
gritou um palavrão, mandando os pingunços pra aquele lugar! Somente assim
conseguiu, finalmente, dormir. Seis da manhã em ponto, os pinguços ficaram
azucrinando: – Zé, Zé Mundão, acorda, acorda, vamos tomar o café da manhã!
Pulou da rede, e logo um deles lhe deu um copo de cerveja, o café para eles,
para Zé, não! Mesmo assim, ele deu uma golada e uma vomitada em seguida!
Fazia
uma manhã de sol, dava para notar o quanto o rio Maués-Açu é bonito, mas, para
o Zé Mundão, o mais admirável de tudo, superando até a beleza do rio, foi ver
as beldades de fio dental, pegando um bronze na área de lazer do barco. A
galera se reuniu novamente no boteco, e haja suco de cevada; lá pelas dez da
manhã, o Padeiro mandou ver: – Até chegar em Maués, tudo será por minha conta,
vamos comemorar meu aniversário, macacada! Aí foi graça para o Zé! Nessa altura
do campeonato, o Padeiro já tinha esquecido sua mulher, os filhos e até seus
convidados. Não estava mais nem aí para a feijoada em Manaus! Chegando às onze
e meia da manhã, o barco ancorou próximo da ponta da Praia da Maresia que,
nesta época do ano, é o point da galera, com areia branca, água cristalina, 500
metros de extensão, palco armado para shows. Estava apinhada de gente.
A
primeira missão era forrar o bucho, assim, seguiram para uma peixaria, cujo
dono era amigo do peito do Gondinho. Ao chegarem ao estabelecimento, a festa
foi total, foram acomodados numa imensa mesa de madeira, posta no quintal, e o
pedido foi feito pelo Padeiro: – Quatro tucunarés parrudos, refrigerante para
as beldades e um camburão de cervejas para os pinguços & Cia! Tudo por
minha conta! Zé Mundão ficou observando o curumim (menino pequeno), filho da
cozinheira, que fez um prato de três andares e colocou duas cabeças de tucunaré
para o moleque, que comeu tudo e ainda pediu bis. Muito diferente de seus
filhos quando eram pequenos, quando sua mulher tinha que fazer “aviãozinho”, a
fim de que eles comessem. Um senhor se aproximou e puxou conversa como Mundão,
era uma pessoa simples, com voz pousada, um típico interiorano: – Você vai
ficar onde, Zé Mundão? – Ainda não sei, mas estou pensando em ficar num hotel
ou na casa da prima do Gondinho. Insistiu o recém-chegado: – Se você quiser
pode ficar na minha fazenda! – Poxa, muito agradecido pelo convite, mas, já fiz
amizade com essa turma e não posso ficar longe deles, agradecendo ao convite. O
Zé ficou surpreso com o convite, pois ficou sabendo através do Gondinho que o
velho era um fazendeiro, um dos mais ricos de Maués.
Deixaram a bagagem no
restaurante e foram para a Praia da Antártica, a mais famosa e movimentada da
cidade, muito arborizada, de areia branca e águas límpidas. Possui o mais lindo
pôr-do-sol do Brasil. Então, Zé se lembrou de um amigo baiano, Lúcio, um cantor
e compositor que passou uma temporada em Maués, e, inspirado nas belas praias,
compôs a bela canção chamada Beira de rio. Com a lembrança, começou a
cantarolar a música: Como é bom morar na praia, no lugar que se imagina,
viver, numa praia, na beira do rio, me dar arre pios, saber que a sua cabeça,
não está nesse lugar, na beira do rio, canta passarinhos, na beira do rio, olha
o Sol se pondo, aonde ele se esconde, do outro lado da praia, do lugar que se
imagina, oi, oi, oi, Maués.
Voltaram ao restaurante, pegaram as suas mochilas e
rumaram para a casa da prima do Gondinho. Lá chegando, foram bem recepcionados,
ela serviu aos visitantes um jantar bem regional, guisado de paca. Porém, que
mais chamou a atenção do Zé foi o hábito que os moradores têm de tomarem a todo
tempo guaraná em pó, ralado na língua do pirarucu, análogo ao hábito que os
paraenses possuem pela cuia de açaí com farinha de tapioca e, os gaúchos, pelo
chá mate no chimarrão. Segundo os estudiosos, esse saudável hábito caboclo,
aliado à dieta amazônica, que inclui uma alimentação básica de peixes, frutas e
verduras, conjugado com exercícios físicos e noites bem dormidas, é a chave
para alcançar a longevidade. Tanto que os nativos de Maués conseguem,
estatisticamente comprovado, a mais longa vida do país.
A prima do Gondinho fez
a gentileza de passar a roupa do Zé Mundão, pois ele iria assistir a encenação
da Lenda do Guaraná. Ela comentou que aos domingos índios saterê-mauê vêm à
cidade, para fazer trocas e receber donativos. Num belo gesto, ele doou algumas
mudas de roupas para que ela entregasse aos índios.
Saiu com o Coroinha para
dar um rolê pela cidade, mas o religioso o levou direto a igreja. Não teve escapatória,
teve de assistir a missa todinha; depois, conseguiu dar um drible nele, pois a
praia do Zé era outra, queria beber e ver a mulherada. Voltou altas horas da
madrugada e, como não conseguiu atar sua rede, o jeito foi dormir no chão.
Foi
acordado pelas beldades, que o convidavam para voltar com elas para a capital.
Ele foi na conversa e, apesar da insistência dos amigos para que ficasse,
embarcou de volta para Manaus. Na saída do barco, comentou para as beldades
sobre um episódio acontecido há anos, quando um padre foi expulso dessa cidade.
No embarque, ele lançou-lhe a seguinte maldição: – Maués, mau és, mau foste,
mau serás!
Quanto ao Zé, apesar das poucas horas em que ali permaneceu, ele
gostou muito da cidade, tanto que falou para elas: – Cruz credo, ainda bem que
não vingou a maldição desse padre, pois ela é uma cidade mui bela, boa,
agradável, de um povo feliz e hospitaleiro. Não possui nada de mau! Oi, oi, oi,
Maués!
Trecho do livro (ainda não publicado) "Zé Mundão" J. Martins Rocha
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