Nasci na Santa Casa de Misericórdia, o meu primeiro
lar foi um flutuante (casa de madeira apoiada em enormes toras, próprias para
flutuar na água), no igarapé de Manaus, onde passei parte da minha infância e
carrego boas recordações daquele tempo bom – atualmente, os flutuantes estão
restritos a “pontões” (posto de gasolina) e locais de lazer e prática de esportes.
O local onde morei era um braço do rio - parte de um
conglomerado de residências, conhecido por Cidade Flutuante (com a maior
concentração de casas situada detrás da Rua Barão de São Domingos). O processo
de ocupação do leito do rio foi iniciado quando do declínio do fausto da
borracha, que ocasionou a falência dos seringalistas, e levou uma multidão de
seringueiros a ficarem sem eira nem beira.
Não tendo onde morar, a solução inicial foi a
construção de casas sobre as águas da orla do rio Negro e, claramente, pelos
igarapés que cortavam a cidade de Manaus. As habitações construídas sobre
troncos submergíveis, tornando-as assim flutuantes, possuíam os assoalhos e os
cômodos de madeira, tendo a cobertura, em grande maioria, feita de palha.
O sufoco era total, pois tinham que recorrer às
lamparinas, candeeiros e lampiões para iluminação dos cômodos - um martírio,
pois não podiam usar nenhum aparelho eletrodoméstico em casa. O café era
torrado e pilado dentro da habitação e fervido num fogareiro à lenha; as roupas
eram passadas com ferro de engomar a carvão e a comida era cozida num fogão a
lenha, com tudo manual, típico de uma casa de ribeirinhos da Amazônia.
Na vazante, a família levava alguns meses para limpar
toda a área externa, pois ficavam muito lixo espalhado pelo chão, como garrafas
de vidro quebradas, latas enferrujadas, tábuas com pregos etc., por isso, o eu vivia
sempre com cortes nos pés e muitas feridas pelo corpo.
Os banhos eram feitos em cacimbas ou camburões de
metal, com água de beber sendo filtrada em potes, bilhas e filtros de barro.
Existia uma grande vantagem: caso o caboco tivesse algum problema sério com o
vizinho, bastava pegar o machado e cortar a corda principal que amarrava o
flutuante à beira rio, ou colocar uma amarra num barco regional, pedir para ser
puxado e mudar-se para o outro lado do rio. Como a minha família era benquista
por todos os vizinhos, nunca precisamos sair do local onde morava.
Durante a enchente, o balneário ficava a altura da
janela do nosso flutuante, bastava pular dentro do rio e tomar banho nas águas
refrescantes, pois ainda não havia poluição em demasia, apesar dos moradores
despejarem dejetos de privadas diretamente no igarapé.
Os barcos regionais ancoravam no flutuante, oferecendo
a preço acessível peixe, leite, queijo, farinha e outros produtos regionais,
além de tábuas e palhas para a manutenção da casa. O flutuante servia de base
para muitos pescadores amadores e banhistas - alguns achavam que aquilo era um
cancro, uma vergonha para os habitantes da terra firme, mas foi exatamente ali
que passei de forma muito feliz a minha infância.
Atualmente, os flutuantes instalados na região do
Tarumã, na orla de Manaus, servem de restaurantes, bares, para curtir o Rio
Negro e prática de esportes, principalmente do Stand Up Paddle (SUP), uma
modalidade similar ao surf, onde o praticante utiliza um remo.
Segundo dados da Capitania Fluvial da Amazônia
Ocidental, existem 94 flutuantes cadastrados, sendo 61 deles de postos de
gasolina (pontoes) – todos eles devem obedecer às normas de segurança e ao
cumprimento das legislações ambientais.
Os proprietários dos flutuantes-restaurantes procuram
convencer os clientes a não jogarem lixos no rio; fazem coleta seletiva,
aproveitamento do óleo de cozinha, para o fabrico de sabões, além do tratamento
de esgotos, filtrando a água dos banheiros através de biodigestores, com a
tecnologia ultravioleta para a eliminação de bactérias.
Os flutuantes mais procurados são os seguintes:
Peixe-Boi, Abaré, Da Tia, Sedutor e Vitória Régia, no Tarumã e, Flutuante do
Leão, no Puraquequara - existem outros tantos, mas, diferentemente da minha
infância, a preocupação ambiental é muito forte, pois a fiscalização é severa.
Nos que moramos em Manaus, temos o privilegio de ter
um imenso e bonito rio passando no quintal das nossas casas, o majestoso Rio
Negro – essa relação com o rio e a natureza sempre foi um constante - curtir
muito os flutuantes de outrora, hoje, quem se deleita são os meus filhos e, no
futuro, serão os meus netos. É isso ai.
Fontes:
Zé Mundão (projeto de um livro)
Jornal Diário do Amazonas, edição de 20 de Setembro de
2015.
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