ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL DO COMMERCIO - 24 DE OUTUBRO DE 2006.
Deitado em minha rede e no vai e vem do seu balanço, começaram a surgir lembranças das ruas da minha cidade e de alguns cidadãos que o tempo fez questão de diluí-las na medida em que a cidade crescia e novas influências sofria. Fiquei feliz porque fiz renascer dentro de mim a imagem de figuras humanas que foram desaparecendo, uma após a outra, sem quase deixar registros de suas existências senão na memória de nossa infância. Se bem que essas pessoas nunca estiveram preocupadas com registros! Até porque sempre assumiram a plenitude do "eu" que escolheram e também não se preocuparam com as identidades que a população lhes impôs! Não posso e nem devo afirmar que eram felizes, ma uma coisa é certa, assumiram seus personagens e deixaram abertamente se desvelar pelas ruas de Manaus suas magníficas personalidades!
Nasci em 1954 e morei quase a vida inteira na rua Lauro Cavalcante, na parte dividida entre a Av. Getúlio Vargas e a Av. Joaquim Nabuco, muito próximo ao Colégio Estadual D. Pedro II, do Quartel da Polícia e da Praça Heliodoro Balbi. (mais conhecida como praça da Polícia). Acostumei, durante a infância, a ver e ouvir a banda musical da Polícia Militar tocar todas as manhãs em desfile com a tropa subindo e descendo a Av.Getúlio Vargas. Até aqui, nenhuma novidade. Entretanto, o que chamava a atenção não era o desfile dos militares carregando armas ao ombro ou as músicas marciais que a banda tocava. O que verdadeiramente animava o desfile era o Bombalá, cidadão que morava na Av. Joaquim Nabuco, ao lado da padaria Modelo, que pela manhã bem cedo ia para a Praça da Polícia esperar a banda sair do quartel e, quando ela se posicionava entre o Cine Guarani e o café do Pina, o Bombalá se colocava à frente e passava a reger a banda transbordando de felicidade! Ele era o maestro! Não tinha e não sobrava música para ninguém, só ele e somente ele é que reluzia no desfile. A medida que a banda subia a Av. Getúlio Vargas, aumentava seu entusiasmo na regência das músicas! Todos percebiam e ficavam perplexos com o entusiasmo do Bombalá, seu olhar fluía felicidade e na empolgação Bombalá babava e babva de pura felicidade!
A criançada gritava "lá vai o Bombalá"! "Pai, olha só o Bombalá", e os adultos respondiam para as crianças "ele é doido!", "ele é maluco" ou "ele é perturbado mental". Quanto mais aquela gente "sã" lhe qualificava com adjetivos perversos, lá ia ele, bem na frente da banda, gesticulando com as varas de regente nas mãos, desfrutando da felicidade que a música lhe proporcionava. Nunca revidou com insultos! Não agredia porque não era agressivo ou talvez a música lhe impedisse a agressividade. Não portava armas nem marchava atrás da banda. Com toda certeza, aquele não era o seu espaço!
Atrás da banda, todos marchavam com passos marciais pesados; ali, naquele lugar, atrás da banda, as pessoas tinham o semblante carregado, até porque carregar o peso do fuzil não causava satisfação a ninguém, ali as pessoas não eram felizes e nem faziam o que queriam! Ah! Bombalá, que bom era lhe ver todos os dias mostrando para todos e para a cidade que o lugar certo é na frente da banda e não na retaguarda ou até mesmo parado na rua para ver a banda passar! O desfile acabava onde começava, no quartel. Após o desfile, o Bombalá retornava para casa para retornar no dia seguinte.
Quando terminava o desfile outro cidadão entrava na cena da cidade! Afinal, a cidade crescia e o movimento de veículos com a cidade e a banda deixava o transito conturbado e lento a ida e vinda de veículos e carroças da cidade! E no cruzamento da Av. 7 de setembro com a Av. Getúlio Vargas, o Macaxeira entrava em ação para para por "ordem" no trânsito! Riscava um círculo no chão daquele cruzamento e com um apito na boca regia o trânsito!
Enfim, o Macaxeira ordenava a desordem e fazia da ordem a nova ordem! O que era mão se transformava em contramão e a contramão na mão da contravenção! E a mão da mão o contrário de tudo e da mão única e daí por diante...!!! Depois seguia para o cruzamento da Av. 7 de setembro com a Av. Eduardo Ribeiro marcando para dobrar à direita quando era para entrar à esquerda e assim por diante. Multava todos os carros, enfim, colocava a ordem na desordem e a desordem na ordem vigente!
Enquanto o Bombalá se ocupava da regência a Banda da Polícia Militar e o Macaxeira em ordenar o trânsito da cidade, mais um personagem entrava em ação: o Tom Mix, ou o Xerife.. Era um homem de idade avançada e transparecia bem em seu semblante as marcas da vida, seu rosto era fino e cheio de rugas. Perambulava pelas ruas do centro fechando as portas das casas e advertindo seus moradores sobre possíveis roubos, pois era difícil de prender os ladrões. Era uma pessoa fácil de se identificar. Tom Mix ou Xerife, usava um chapéu de Cowboy, terno preto com listas finas brancas e levava sempre no peito uma grande estrela de Xerife!
Como o Bombalá e o Macaxeira, o Xerife era, também, uma pessoa que não agredia a ninguém e todos esses cidadãos eram queridos e estimados pelas crianças, volta e meia o Tom Mix entrava nas brincadeiras infantis de bang-bang sempre na condição de Xerife. Ah! Ia me esquecendo! O Xerife era apaixonado pelo Roy Rogers e seu maior sonho era ter um cavalo branco igual ao do Cowboy. No meio das brincadeiras infantis, seu pesado semblante se modificava e via-se nele só doçura e ternura misturada à felicidade infantil! Alguns pais quando viajavam, principalmente para os Estados Unidos, traziam para ele estrelas de Xerife ou revólveres semelhantes àqueles dos atores dos filmes de Hollywood! Tom Mix saia diariamente portando estrelas de diferentes formas e tamanhos no peito e estava sempre impecável com seu paletó de listas finas sobre o colete e, é claro, com cartucheiras e revólveres de brinquedo, cada um mais bonito que o outro, tudo presente que recebia
daqueles que lhes afagava o ego!
Nas ruas da minha infância.
Paulo Monte *
* Paulo Monte é filósofo, com mestrado em Antropologia e professor da UFAM.
Nasci em 1954 e morei quase a vida inteira na rua Lauro Cavalcante, na parte dividida entre a Av. Getúlio Vargas e a Av. Joaquim Nabuco, muito próximo ao Colégio Estadual D. Pedro II, do Quartel da Polícia e da Praça Heliodoro Balbi. (mais conhecida como praça da Polícia). Acostumei, durante a infância, a ver e ouvir a banda musical da Polícia Militar tocar todas as manhãs em desfile com a tropa subindo e descendo a Av.Getúlio Vargas. Até aqui, nenhuma novidade. Entretanto, o que chamava a atenção não era o desfile dos militares carregando armas ao ombro ou as músicas marciais que a banda tocava. O que verdadeiramente animava o desfile era o Bombalá, cidadão que morava na Av. Joaquim Nabuco, ao lado da padaria Modelo, que pela manhã bem cedo ia para a Praça da Polícia esperar a banda sair do quartel e, quando ela se posicionava entre o Cine Guarani e o café do Pina, o Bombalá se colocava à frente e passava a reger a banda transbordando de felicidade! Ele era o maestro! Não tinha e não sobrava música para ninguém, só ele e somente ele é que reluzia no desfile. A medida que a banda subia a Av. Getúlio Vargas, aumentava seu entusiasmo na regência das músicas! Todos percebiam e ficavam perplexos com o entusiasmo do Bombalá, seu olhar fluía felicidade e na empolgação Bombalá babava e babva de pura felicidade!
A criançada gritava "lá vai o Bombalá"! "Pai, olha só o Bombalá", e os adultos respondiam para as crianças "ele é doido!", "ele é maluco" ou "ele é perturbado mental". Quanto mais aquela gente "sã" lhe qualificava com adjetivos perversos, lá ia ele, bem na frente da banda, gesticulando com as varas de regente nas mãos, desfrutando da felicidade que a música lhe proporcionava. Nunca revidou com insultos! Não agredia porque não era agressivo ou talvez a música lhe impedisse a agressividade. Não portava armas nem marchava atrás da banda. Com toda certeza, aquele não era o seu espaço!
Atrás da banda, todos marchavam com passos marciais pesados; ali, naquele lugar, atrás da banda, as pessoas tinham o semblante carregado, até porque carregar o peso do fuzil não causava satisfação a ninguém, ali as pessoas não eram felizes e nem faziam o que queriam! Ah! Bombalá, que bom era lhe ver todos os dias mostrando para todos e para a cidade que o lugar certo é na frente da banda e não na retaguarda ou até mesmo parado na rua para ver a banda passar! O desfile acabava onde começava, no quartel. Após o desfile, o Bombalá retornava para casa para retornar no dia seguinte.
Quando terminava o desfile outro cidadão entrava na cena da cidade! Afinal, a cidade crescia e o movimento de veículos com a cidade e a banda deixava o transito conturbado e lento a ida e vinda de veículos e carroças da cidade! E no cruzamento da Av. 7 de setembro com a Av. Getúlio Vargas, o Macaxeira entrava em ação para para por "ordem" no trânsito! Riscava um círculo no chão daquele cruzamento e com um apito na boca regia o trânsito!
Enfim, o Macaxeira ordenava a desordem e fazia da ordem a nova ordem! O que era mão se transformava em contramão e a contramão na mão da contravenção! E a mão da mão o contrário de tudo e da mão única e daí por diante...!!! Depois seguia para o cruzamento da Av. 7 de setembro com a Av. Eduardo Ribeiro marcando para dobrar à direita quando era para entrar à esquerda e assim por diante. Multava todos os carros, enfim, colocava a ordem na desordem e a desordem na ordem vigente!
Enquanto o Bombalá se ocupava da regência a Banda da Polícia Militar e o Macaxeira em ordenar o trânsito da cidade, mais um personagem entrava em ação: o Tom Mix, ou o Xerife.. Era um homem de idade avançada e transparecia bem em seu semblante as marcas da vida, seu rosto era fino e cheio de rugas. Perambulava pelas ruas do centro fechando as portas das casas e advertindo seus moradores sobre possíveis roubos, pois era difícil de prender os ladrões. Era uma pessoa fácil de se identificar. Tom Mix ou Xerife, usava um chapéu de Cowboy, terno preto com listas finas brancas e levava sempre no peito uma grande estrela de Xerife!
Como o Bombalá e o Macaxeira, o Xerife era, também, uma pessoa que não agredia a ninguém e todos esses cidadãos eram queridos e estimados pelas crianças, volta e meia o Tom Mix entrava nas brincadeiras infantis de bang-bang sempre na condição de Xerife. Ah! Ia me esquecendo! O Xerife era apaixonado pelo Roy Rogers e seu maior sonho era ter um cavalo branco igual ao do Cowboy. No meio das brincadeiras infantis, seu pesado semblante se modificava e via-se nele só doçura e ternura misturada à felicidade infantil! Alguns pais quando viajavam, principalmente para os Estados Unidos, traziam para ele estrelas de Xerife ou revólveres semelhantes àqueles dos atores dos filmes de Hollywood! Tom Mix saia diariamente portando estrelas de diferentes formas e tamanhos no peito e estava sempre impecável com seu paletó de listas finas sobre o colete e, é claro, com cartucheiras e revólveres de brinquedo, cada um mais bonito que o outro, tudo presente que recebia
daqueles que lhes afagava o ego!
Nas ruas da minha infância.
Paulo Monte *
* Paulo Monte é filósofo, com mestrado em Antropologia e professor da UFAM.