sábado, 9 de fevereiro de 2013

AMAZONENSES (V)


Dando prosseguimento as homenagens aos amazonenses, hoje, é o dia do saudoso músico Celito – ele foi cantor, compositor, pesquisador cultural e violonista e fundador da Banda Independente da Confraria do Armando (BICA) – o texto a seguir, foi escrito pela Heloísa Braga, viúva do nosso homenageado – ela escreveu a meu pedido, porém, vai mais além, pois faz um passeio muito bonito pela história cultural da nossa terra.         

     CELITO CHAVES, nascido Jocelin Ferreira Chaves, na Rua Vinte e Quatro de Maio, centro de Manaus, em 10/10/1946, era filho de Alberto do Vale Chaves (marítimo, mecânico) e Maria Audacy Ferreira Chaves (prendas do lar, costureira), ele de Três Casas/Humaitá-AM, ela de Riacho do Sangue/Sobral-CE, tendo ido menina ainda para Três Casas. A família morou em vários endereços, sempre no Centro ou na Praça Quatorze: Apurinã, Dr. Machado, Tapajós, Tarumã. Celito estudou no Grupo Escolar Euclides da Cunha e no Instituto de Educação do Amazonas, tendo passado também pelas aulas particulares e pela palmatória da conceituada (pelos pais!) Dª Merandolina.

  Desde seu tempo de ginasiano, no Instituto de Educação, se destacou pela desenvoltura em público, tendo sido representante de classe e orador “oficial” da turma na saudação aos novos colegas e aos aniversariantes, conclamado a tal – o que ele anos depois contava com muito orgulho - pelo respeitado mestre João Crisóstomo de Oliveira. Lá no Instituto, aflorou também seu pendor musical, iniciando-se, no ritmo, na fanfarra do colégio. Foi nessa época que despontou para o palco, participando do concurso, na Divina Providência, que elegeu o Rei do Rock no Amazonas, cantando “Broto Legal”, na pegada do cantor Sérgio Murilo, sucesso da Jovem Guarda. Daí ter-se tornado atração, aos domingos, naquela casa, onde o apresentador Azevedo (da TV Lar) perguntava ao público, enquanto ele cantava atrás das cortinas, “de quem é essa voz”?

     Já formado, no curso Normal, e trabalhando no Porto de Manaus, onde entrou com quinze anos, como estafeta, fundou com Adelson Santos (teclado), Noval Benaion Melo (bateria), Luis Carlos Santos (?) (guitarra) e Lindomar (? filho do Dr. Mozart Miquelino, advogado), na casa do primeiro, no bairro de Aparecida, o conjunto “The Rocks”, que começou tocando nas festinhas de casa de família e se profissionalizou nos clubes da juventude “dorée” da cidade, Ideal (papinha dançante na boate Moranguinho), Rio Negro e também no Cheik Clube, nos Barés, São Raimundo e Educandos.  Deste tempo ressoam ainda as antológicas disputas, no Festival Lira de Prata, promovido pelo Cheik Clube, entre os “The Rocks” e seu rival, surgido logo depois *, “The Blue Birds”. Continuando no ritmo e incorporando a harmonia e a melodia, Celito tocava baixo e fazia vocal. Seu primeiro baixo foi feito pelo conceituado luthier Rochinha e a técnica vocal aprendida com os irmãos Caminha, do Cancioneiro da Lua, cuja casa frequentou adolescente.

   O repertório do conjunto era composto de rock americano, canções jovens românticas italianas, muito Beatles, incorporando depois as músicas dos festivais, principalmente Caetano Veloso. Por isso, ou por desavenças internas, o conjunto se desfaz (última apresentação em...) quando o samba (Martinho da Vila, com o famigerado “Passei no vestibular”) cai no gosto dos frequentadores dos clubes. Celito, para quem rendimento do conjunto era necessário, passa então a atuar em outros grupos, compondo inclusive o Blue Birds, como vocalista.

   Casa-se com Lídia França de Melo, que conhecera como bailarina no Teatro Amazonas, em cuja Orquestra tocara **; com Lídia tem Eric, seu segundo filho, nascido em 1971 (sua primeira fora Illene, nascida em 1969). Pai de família, se desdobra, de dia na Fábrica Barés, vivendo a transição dessa, quando comprada pela Antártica, na Treves e de noite nos conjuntos dançantes. Passa no vestibular da UA, para o curso de Letras, e no concurso da SEDUC, professor de 1ª a 4ª, indo lecionar no Gustavo Capanema. Anos depois ainda se lembrava dos seus primeiros embates com a criançada e da vista e do vento abençoado, vindo do rio.       
 
    Sua passagem pelo curso de Letras mostra bem quem era Celito Chaves. Já no vestibular recusara a ajuda o futuro cunhado, fiscal (a família, bem situada socialmente, não via com bons olhos o noivado com um músico pé rapado). O curso teve frequência irregular, devido aos compromissos profissionais, mas foi aprovado em todas as disciplinas em que se matriculou e era querido dos professores, não só por sua atuação em classe, mas também pelo violão, que já o acompanhava nas noites. De tudo que cursou se orgulhava, sobretudo das duas disciplinas de Alemão, ministradas por Frau Schubert, que elogiava sua pronuncia; muitos anos depois, ainda gostava de repetir frases e números, com a pronúncia perfeita que seu ouvido privilegiado captara.

   Quando o conheci, ainda era aluno de Letras, há alguns semestres sem se matricular; incentivei-o a voltar e até o ajudei a decifrar os textos da famigerada Linguística (na época eu também não entendia nada disso). Porém a UA implanta seu primeiro programa de jubilamento e Celito é chamado a justificar os anos de retenção. Entrevistado pelo mestre e amigo Carlos Eduardo..., lhe diz: “pode me jubilar sem constrangimento, a UA me enganou, fiz vestibular para Artes, não abriram o curso e me colocaram em Letras” Não houve quem o demovesse.

      Quando ainda componente do The Rocks, acompanhara o compositor Aníbal Beça em um festival ocorrido no Teatro Amazonas; ganhando o compositor, foram todos convidados para se apresentar no Festival de Horoco (?), em Villa Vicenzo, Colômbia. De lá, o conjunto foi conhecer Bogotá, rendendo essa viagem muitas histórias, que Celito se deleitava em contar. A experiência como acompanhante e arranjador nos festivais da década de sessenta, não só rendeu essa viagem, mas sua passagem para a posição de também compositor. Começa em um festival do Colégio Estadual, onde “Maria de todas as horas” já alcança uma classificação; no Festival Estudantil do Amazonas, realizado no anfiteatro do Parque Dez, com a presença de Carlos Imperial no júri, a canção “Malissa” recebe o prêmio máximo do júri popular.

   É época dos encontros para o bate papo na Praça do Congresso, onde a nova geração, a sua maneira, imita o Clube da Madrugada – Renan Freitas Pinto, Aldisio Filgueiras, Aníbal Beça Joaquim Marinho e outros jovens sedentos da arte, fosse ela música, literatura ou cinema. É época também das serenatas e das alvoradas, por ocasião dos aniversários. Todos moram perto, pois a cidade ainda é pequena; anda-se pelas ruas sem temor.

   No início de 1975, o casamento de Celito se desfaz, levando-o a ficar um tempo arredio das noitadas e dos amigos, mas no dia 8 de junho aceita o convite para uma Manhã de Sol no Clube Guanabara, na estrada do V8, ao qual comparece com seu inseparável irmão caçula Roberto “Cambota”, exímio ritmista, baqueta de ouro da Escola de samba Vitória Régia, da qual fora fundador;  Roberto era seu usual acompanhante no atabaque.

Cheguei ao Clube na companhia do Luiz Wagner, o conhecido Vavá do Atabaque, e sua namorada e futura esposa, Graça Guerra. Eles haviam ido me buscar na Travessa Comendador Clementino, onde morava, e eu relutara muito em acompanhá-los, pois vínhamos de duas “viradas”, uma na sexta, depois do show do Jorge Ben (ainda não era o Jor) no ginásio do Olímpico, e outra no sábado, quando, depois de uma feijoada na casa do Amazonino Mendes (ainda não era o político), no Parque Dez,  emendáramos para o Tarumãzinho. Queria mais era descansar. Mas a turma não iria me deixar sozinha em um domingo ensolarado.

  Eu os conhecera na pizzaria Beb’s, na Rua Leonardo Malcher, ao lado do escritório da Hidroterra, firma de consultoria em estradas e barragens, que me trouxera a Manaus, em novembro de 1974, para cumprir um contrato junto ao DERAM, o projeto do alargamento do acesso ao Aeroporto Eduardo Gomes, que estava sendo construído. Pedrão e Lu, pernambucanos, donos do estabelecimento pioneiro, me apresentaram à turma que ali se reunia para tomar cerveja com pizza no belisco e principalmente cantar. Rinaldo Buzaglo no violão, Vavá no atabaque, Marquinhos na caixa de fósforos, eram acompanhados por todos; no repertório muito Vinicius de Morais, muito samba e bossa nova.  Com eles frequentava outros bares, não eram muito na época, e casa de seus amigos, com eles comecei a conhecer Manaus que ate então me era restrita ao escritório, ao DNER e aos restaurantes do Centro que serviam peixada sem espinha para aquele bando de rodoviários mineiros.

   Chegando ao Guanabara, encontramos já uma grande roda no salão, onde identifiquei vários conhecidos, e ao violão um rapaz que eu não conhecia e que logo me chamou a atenção, por sua maneira de interpretar, se dando à música; fui chegando perto e ele começou a cantar suas composições, quando cantou “Maria de todas as horas”*** me rendi; naquela roda minha atenção passou a ser só dele, afinal eu sou Maria também...

   Muito calor, fui à piscina; na saída d’água, vejo-o na borda me esperando, e acontece que, aos subir os degraus da escadinha, um dos laços laterais de meu biquíni ipanemense se desfaz, subo segurando e ele vem para amarrar. Um minuto de suspense, respiro fundo e deixo, dizendo: “você está tomando conta de mim? Eu estou precisando de quem tome.” Ao que ele responde: ”até quando você deixar”.

  Voltamos ao salão já olhos nos olhos. A tarde caiu, a turma foi indo embora, ficando somente Celito, eu e Roberto. Um taxi deixou Roberto na Tarumã e nós na Travessa da Comendador. Mais tarde fomos jantar (o primeiro de tantos e tantos, Celito adorava um restaurante), no Chapéu de Palha, na Vila; comemos costela de tambaqui grelhada, a mineira ainda não tinha aprendido a lidar com as espinhas. Hoje, quando passo pela Rua Paraíba e vejo aquele posto de gasolina, penso no crime que foi derrubarem aquela edificação tão pitoresca, projeto do arquiteto Severiano Ribeiro, que foi palco de nosso primeiro jantar apaixonado.

  E aí foram trinta e cinco anos de convivência com muito amor, muita conversa, muita birita, muitos filhos (fizemos quatro!), muitas viagens e, sobretudo, muita música. A música para o Celito era um ambiente natural. Recentemente alguém comentou no Face a facilidade que ele tinha de compor “a gente contava um caso e ele ia fazendo uma música”. Com o tempo, Celito foi amadurecendo, diversificou o estilo e aprimorou as letras.

   Continuou gostando do baião, mas produziu bossa nova, guarânia, acalanto, canção, samba, marcha, bolero. As letras mantiveram a preocupação social – Carmen Doida, O Cabo Salustiel -, mas passaram a falar de amor. E a cena cultural ganhou um participante inquieto: produz programa de TV, para documentar os músicos e compositores, na então TV Educativa, onde co-produz o Carrossel da Saudade; faz shows no Teatro Amazonas e pelo interior; participa da Escola de Samba Sem Compromisso – foi com seu “Mundo encantado da Criança” que o então bloco passa a categoria de escola, para despeito do Andanças de Cigano – até que ela se mude do Centro; funda a BICA: faz marchas para várias bandas, entre elas para a do Jangadeiro; faz música, durante oito anos para a Banda do Boulevard; com Rinaldo Buzaglo, disputa na União da Ilha, com um lindo samba enredo homenageando    ....... que cai, para seu alívio (já estavam para matar gente, conta ele) em quinto lugar;canta na noite em bares e restaurantes;  faz jingles comerciais e políticos (Freire, candidato à presidência, vem a Manaus e é recebido com música nossa, de Celito e Guto Rodrigues), faz shows na praça; canta no comício das direta, pela legalização do Partidão etc., etc.

    E não deixa de frequentar os festivais: vence por duas vezes o do SESI, na primeira vez com sua canção mais conhecida,  “A Saga do cabo Salustiel” e, na segunda, na Bola da Suframa, com “Acalanto para gente grande”.Fica em terceiro lugar no da Superintendência Cultural, atrás de duas canções maravilhosas, “Nova Manhã”, de Roberto Dibo e a campeã “Dia de Festa”, do então Torrinho, interpretada pela então Suzi somente.  Despede-se deles com uma vitória tripla: no XI FUM, ganha o 1º lugar com “Zona de Risco” (parceira comigo), mais conhecida como ”Carmen Doida”, interpretada por Lucinha Cabral, o 2º com “Maria Célia” (parceria comigo e com Rinaldo Buzaglo), e o melhor arranjo; só não ganhou a melhor intérprete porque o Maca praticamente voou no palco, numa malha cor da pele e uma capa negra, interpretando “Urubu” de Davi Almeida.

   Onde a música chamava, lá estava Celito, com sua facilidade de compô-la, de interpretá-la.

**Saibam que o Teatro tinha sua Orquestra e seu Corpo de Baile, bem antes da era Robério Braga.
*Qual dos conjuntos surgiu primeiro? Contrariando os integrantes do The Rocks, Beto Sá Gomes, o Beto do Blue Birds, afirma (e está escrevendo um livro), que foi o Blue Birds.
*** “Maria, Maria, Maria vem vem vem / (...) Não falem mal das Marias/ porque eu vou me zangar/ de uma elas eu vim/ as Marias eu devo amar”


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