domingo, 9 de abril de 2023

MALHAÇÃO DE JUDAS

 

Foto: José Rocha

Trecho do Livro "Vila Paraíso, Jose Rocha "
Sempre gostei da malhação de Judas, esta brincadeira vem desde a minha infância no Igarapé de Manaus, onde os adultos se reuniam a partir das dez horas da noite da sexta-feira santa e faziam os ajustes finais nos bonecos, sendo pendurados somente na madrugada, ficando sempre alguém de vigia para evitar a malhação antes da hora.
O Judas sempre tinha o rosto parecido com alguém da rua, era uma forma de malhar algum morador que, durante o ano fez alguma coisa de ruim para com a comunidade.
Existia todo um ritual, com direito a leitura de um longo testamento, mas, o momento mais esperado era quando o Judas era queimado e arrastado pela rua.
Falam os mais velhos que devemos respeitar a Sexta Feira da Paixão ao acordarmos até a boca da noite.
Respeitando essa tradição, reunimos uma galera no Bar da Dona Wanda, para beber umas geladas e confeccionar um Boneco de Judas. Lembro-me de alguns colegas: Batata, Capuchinho, Núbia, Hino, Manoel Mormão, Magaiver, João Cana Brava, Wanderlan, Paulinho, Taca, Alcenir, Chiquito, China, Tia Wanda, Tia Daca, Zigomar, Henrique e outros.
Cada um deu a sua contribuição: calça jeans, cinturão, sapatos, camisa manga comprida, meias, jornais, isopor, agulhas, linhas e muita paciência para confeccionar o Judas.
Não foi fácil fazer o Judas, pois não tínhamos experiência em confecção de bonecos. Deu trabalho danado encher os sapatos, as pernas, o corpo e os braços, o problema maior foi a cabeça, pois parecia mais um ET (extraterrestre).
Lá pelas onze da noite a fera ficou pronta, faltava apenas dar um nome ao Judas. Todos entraram em comum acordo: o homenageado seria um vizinho metido a besta, fanfarrão, contador de lorotas, abacabeiro, pescador, barrigudão e que se achava o machão da Rua Tapajós.
Não deu outra: penduramos o boneco numa árvore no quintal do Manoel Mormão (atual Academia do Tabosa), com uma placa no peito "PEDRÃO, O MACHÃO!”.
A estratégia era acordar bem cedo, tocar fogo no fuleiro, correr ladeira acima e zonar com o Pedrão antes do homenageado saber.
Conforme combinado, ao chegarmos no quintal do Manoel Mormão, ele deu um pulo da rede e gritou:
- Prefeito, o Felipe Viriato veio aqui de madrugada com um terçadão, cortou o Pedrão e levou lá prás bandas da Getúlio Vargas!
Para que não conhece o Felipe, ele é gente boa, filho do saudoso advogado Dr. Viriato, morador tradicional da Avenida Getúlio Vargas. Quando era mais jovem gostava de aprontar, qualquer bronca era com ele mesmo, ao ficar mais velho mudou de feição, virou uma pessoa de boa índole.
Pois bem, resolvi encarar o Felipe, entrei pela Vila Paraíso até a Getúlio, onde pude observar o "Pedrão, o Machão", pendurado numa árvore em frente à Casa Aroeira. Dei uma bronca no Felipe, ele na maior cara de pau chegou até a chorar, pediu mil desculpas. Subiu na árvore, cortou o Pedrão e o levou inteirão para ser estraçalhado na Ladeira da Tapajós.
Nesse ínterim, o Pedrão de carne e osso já estava sabendo da onda. Como de costume, se plantou em frente da casa do Mormão, sem camisa, mostrando aquele barrigão sensual, prá negas dele, é claro!
Ficamos sem jeito nem clima para fazer a malhação. Entramos num comum acordo: colocamos o Pedrão sentado numa cadeira de macarrão, com chapéu e óculos tipo Raimundo, sem nada de malhação com o Pedrão!
Passou o dia todo na Ladeira da Tapajós, pousando para as fotografias, com muita cerveja, dominó, peixe frito e som do DJ Louro Isaac, tudo pago, é claro, pelo "machão" PEDRÃO!
Nos últimos anos, passei a frequentar a malhação de Judas do Bar do Cipriano, conhecido também como a “Confraria do Ferrão”, na Rua Ferreira Pena esquina com a Avenida Airão, onde a tradição era mantida por mais de trinta anos, com a coordenação do meu amigo Agenor Braga. Segundo o meu amigo, antropólogo, o Ademir Ramos:
“A tradição vem de muito longe. Na antropologia cultural registra-se como um dos ritos das sociedades rurais do medievo, passando pela Península Ibérica e sendo reinventada por toda a América Latina. No Brasil, sua manifestação era marcante na antiga capital da República, no Rio de Janeiro, onde o Judas tinha a configuração diabólica e em seu interior depositavam fogos pirotécnicos, provocando explosões com luzes coloridas seguido de muita gritaria e manifestações populares. O fervor dos brincantes era tanto, que deixava a polícia desnorteada sem saber por onde começar a debelar o fogaréu. Resultando, dessa feita, na proibição da manifestação no centro urbano da antiga capital federal. Na verdade, não era o fogo que incomodava, mas a picardia dos brincantes que ironizavam os políticos de então, fazendo sua malhação em praça pública. Em Manaus, ainda se cultua essa prática, sobretudo no Bar do Cipriano, onde os políticos são malhados pelos justiceiros de plantão”.
Tudo que é bom, um dia acaba! Infelizmente, a tradição de malhar Judas está acabando. As novas gerações não valorizam esta brincadeira. O Bar do Cipriano fechou e a malhação de Judas no centro já era!
Para minha surpresa, o Wiliam, o filho do Damião “Branco”, na Sexta-Feira da Paixão de 2023, passou à noite em minha casa, falando
que iria fazer um Judas, prontamente doei uma camisa de mangas compridas, no dia seguinte, corri para tirara fotografias do dito cujo, mas, encontrei apenas o boneco todo destroçado, aproveitei e fiz algumas adaptações. Fico engraçado o "E.T. LADEIRA DA TAPAJÓS", pois naquele pedaço a turma bate forte no cigarro e na cerveja, um reduto da boêmia e da gozação.