A
figura do Saci é, sem dúvida, uma das mais populares entidades fantásticas do
nosso Brasil, um negrinho de uma só perna, de cachimbo e gorro vermelho, e que,
consoante a crença popular, ele é bastante travesso, persegue os viajantes, armando
ciladas pelo caminho – por outro lado, o nosso Saci da Pareca, foi assim
apelidado desde a sua tenra idade, em decorrência de ter nascido também negrinho,
por adorar usar um macacãozinho encarnado e, ser morador do bairro de
Aparecida, chamada carinhosamente pelos seus moradores por Pareca.
O nosso Saci nunca foi
chegado a perseguir ninguém, muito menos de armar ciladas, mas “já foi um menino levado, jogador de petecas,
só não foi sacristão porque era levado da breca”, como escreveu um dia o
compositor e cantor amazonense “Carapeta” – aprontou muito na sua infância,
adolescência, vida adulta e, um pouco na velhice, mas, tudo dentro da
normalidade de um saci.
Nasceu numa casa flutuante
que ficava nos arredores do bairro e, por ser de uma família bem pobrezinha, a
sua mãe biológica resolveu deixá-lo com um casal que morava na Bandeira Branca,
abandonando-o para sempre – recebeu na pia batismal o nome de José, registrado
oficialmente no cartório como José Raimundo de Souza, tornou-se o caçula dos
cinco irmãos, a mãe era capixaba e o pai cearense; um dos seus irmãos era o
empresário Zezinho da Casanova, um jogador de futebol que virou empresário,
dono de uma loja de roupas masculinas, famosa nas décadas de 70 e 80, situada na
Avenida Eduardo Ribeiro.
O seu bairro é considerado
o berço de muitos historiadores, poetas, sambistas e católicos fervorosos, fica
na zona sul, sendo um dos mais antigos de Manaus, nele ficava a Cervejaria
Amazonense e a Fábrica de Gelo Cristal, de propriedade dos Miranda Corrêa –
tudo a ver com o Saci da Pareca.
Ele gostava de frequentar
desde novinho, a Igreja de Nossa Senhora de Aparecida, principalmente, as
novenas das terças-feiras e as missas aos domingos; brincava de futebol no
campo do Colégio Dom Bosco; foi ajudante do seu pai adotivo numa pequena
taberna de vendas de farinhas e legumes, começando a batucar no balcão e a
tomar gosto pela música ainda menino.
Ainda rapazola, começou a participar
das rodas de samba que aconteciam no antigo “Largo da Bandeira Branca”, um
reduto de boêmios, sambistas e palco dos principais eventos culturais do
bairro.
Foi esquentado da cabeça
desde novinho, não levava desaforos para casa, brigava com os seus colegas de
bairro e, constantemente entrava em atritos com os moleques dos bairros de São
Raimundo e da Matinha, coisa normal quando Manaus acabava no bairro de Flores, numa
época em que os jovens tinham rixas com os outros das imediações, com muitas
brigas no “mano a mano”, sem uso de armas brancas ou de fogo.
No campo profissional, foi
de tudo um pouco, ralou muito trabalhando nos depósito das Lojas Americana e
Bemol e de uma empresa sediada no meio do Rio Negro (num flutuante), prestadora
de serviços para a Refinaria de Manaus - também comercializou por muito tempo
os famosos e proibidos “bicho de casco” (Tartarugas e Tracajás) e dos seus ovos,
muito apreciados pelos manauaras de então, sempre dando um jeitinho brasileiro
para driblar a fiscalização das autoridades.
Chegou a ser o
proprietário do “Sacy Bar”, um boteco situado a Rua Ramos Ferreira, próximo à
sede do Rio Negro Atlético Clube, – o lugar era muito frequentado pelos
sambistas do bairro, da turma do Partido dos Trabalhadores, artistas e boêmios
do centro da cidade, com a casa cheia todos os finais de semana, pois rolava
muito samba de raiz (tocados em aparelhos 3 em 1, com discos de vinil e fitas
cassetes), com muito caranguejo no toque-toque; servia aos clientes,
gratuitamente, algumas porções de camarões, além de ter uma cerveja
estupidamente gelada, tipo “véu de noiva”.
Quando alguém pedia para ele
colocar uma fita cassete, caso fosse um som no estilo da banda “Pink Floyd”,
ele cuspia fogo, expulsava o freguês na hora, não gostava nem pouco de rock,
achava que era coisa de maconheiro – dizem alguns frequentadores antigos que, o
Sacy era um “cara de lua”, instável, podia passar a noite sorrindo, mas, de
repente, fechava o tempo.
Orgulha-se de ter tido
como cliente famoso, o saudoso Josué Cláudio de Souza (Pai), o fundador da
Rádio Difusora do Amazonas e prefeito de Manaus, ele apareceria por lá para
tomar umas cervejas e comprar camarão da melhor qualidade e, quem ia buscá-lo
era a sua filha, a inesquecível radialista Fezinha Anzoategui.
Depois de alguns anos
movimentando o seu boteco, teve um problema muito sério com um cliente e vizinho,
foi xingado e ameaçado, culminado com uma briga fatal, sendo obrigado, em
seguida, a fechar para sempre o seu estabelecimento.
Foram anos difíceis para o
Saci, inclusive, teve que passar por tratamentos psicológicos para esquecer
aquela cena fatídica que aconteceu no seu bar, para dizer a verdade, ele ainda
sente muito que aconteceu naquele dia. Para superar este trauma e sobreviver, buscou
na música um escape e, o conforto espiritual, frequentando com mais assiduidade
à igreja do bairro.
No carnaval, gosta de
frequentar os ensaios da sua escola de samba do coração, a Mocidade
Independente de Aparecida (a Pareca) e, quando é possível, desfila garbosamente
no Sambódromo. Também adora as apresentações dos bois de Parintins, viajando
todo ano para a Ilha de Tupinabarana, para torcer pelo seu boi preferido, o
Garantido. Por ser católico fervoroso, faz de tudo para participar do Círio de
Nazaré, em Belém do Pará, onde segura a corda em todo o seu trajeto e, aproveita
para “bater com força” no Pato no Tucupi e na Maniçoba.
Por ser um exímio
percussionista, sempre sai de casa com uma sacola surrada, cheia de
instrumentos musicais (agogô, reco-reco, triângulo e tamborim), fazendo
apresentações de forma descompromissada nos botequins de Manaus, principalmente
no Bar Caldeira, Bar do Armando, Bar dos Cornos, ET Bar, Bar do Cipriano e no
Bar do Metal – sendo muito aplaudido pela sua forma diferente de tocar e, de
rebolar, um tanto sensual.
Certa vez, resolveu passar
no baixo meretrício da Rua Mauá, centro antigo de Manaus, parou numa barraca de
churrasquinho de gato, deixando no chão a sua sacola de instrumentos e,
saboreou um miau da melhor qualidade; um larápio percebendo o descuido do Saci
- levou todas as suas ferramentas de trabalho – chorou que nem um bezerro desmamado,
muitas pessoas foram solidarias e, fizeram uma quota para a compra de novos
instrumentos – ele ainda gosta de comer um churrasquinho de bichano, mas, com
um olho no gato e, o outro na sua bolsa!
Por essas e por outras,
tornou-se um cara folclórico na nossa cidade. Quando alguém pergunta o porquê
do apelido Saci, ele responde:
- Sou um Saci diferente, tenho duas pernas, porém,
uma é morta! – referindo-se ao seu bilau.
Quando chega aos botecos, após
tomar várias e diversas, fica nostálgico, gosta de lembrar o passado, sempre
cita o Peteleco & Oscarino, do Boi Brinquedinho (do saudoso Festival
Folclórico do General Osório), onde foi “tripa” (aquele cara que dança embaixo
do boi); das Pastorinhas do Luso e dos causos interioranos:
- Peteleco, quantas partes
se dividem o corpo humano? – pergunta o Oscarino. - Depende das porradas que o
caboco tomar! – fica dando gargalhada das respostas do Peteleco.
- Peteleco, como se diz
noventa e nove em japonês? – Quazixém! – idem.
- Ei, meu boi! Vem prá cá!
Vem dançar. Que a festa já vai começar! Ei,
Boi! – canta em voz alta e, começa a dançar a toada antiga.
- Rocha, filho do Cão do
Luso! - faz sempre esta saudação ao me encontrar, pois ele sabe que eu fui ajudante
do Cão (o Lapinha), o satanás de uma famosa pastorinha (peça teatral) que
acontecia no Luso Sporting Club.
- Alô Dona Maria, do Lago
do Limão, o sêo marido mando avisar que vai demorar a chegar, pois um pau
atravessou bem na boca do Lago do Periquito, assim que o pau sair, o barco vai
continuar a viagem, abraços e beijos, Afonso! – conta com sorrisos, desse aviso
interiorano.
O Saci possui família, tem
um casal de filhos e faz bastante tempo em que está separado da mulher, apesar
de morarem no mesmo teto (isto é normal para muitos casais) – ele adora um “rabo
de saia”, certa vez, arranjou uma namorada com mais de setenta anos, adorava
chamá-la por “Minha Sincera”, a velha era cheia da grana, gostava muito da
noite e, pagava todas – com o passar do tempo, ela deu uma rasteira no Saci,
arranjou um garotão “bombado” que tinha idade para ser seu bisneto – o pobre do
Saci chegou até ameaçar em pular, na vazante, da Ponte Fábio Lucena (liga os
bairros de Aparecida ao São Raimundo) caso ela não voltasse para os seus
braços. Tudo em vão!
O
tempo foi um santo remédio para ele esquecer a vovozinha – arranjou, tempo
depois, outra namorada, uma coroa fogosa, cheia de dengos, “biriteira” de mão
cheira e frequentadora assídua dos botecos dançantes de Manaus; ele gosta de
chamá-la de “Amorzinho”.
Algumas
pessoas falam, eu não sei e, também não posso afirmar que, a dita cuja põe uma
galhada enorme no pobre coitado – somente sei que, vez e outra, ele fica
chorando pelas mesas dos bares, lamentando o abandono por parte de sua amada –
pouquíssimas vezes o vejo feliz com ela, as pessoas falam que isto acontece
somente quando ele está com “bala na agulha”, momento em que ela usa e abusa do
Saci, largando-o somente quando fica na lisura total.
O Sacy está
pensando em dar em basta nisso e, partir para uma nova conquista, afinal, ele é
frágil no amor, fica logo apaixonado - espero que ele tenha êxitos e, encontre
uma mulher decente e que o respeite.
O
nosso Saci da Pareca está aposentado, ganha uma merreca, batalha muito para
sobreviver, vende camarão seco, guaraná em pó, filé de Pirarucu, copaíba e mel,
além de fazer o que mais gosta: tocar os seus instrumentos musicais, bebericar
umas e diversas nos botecos de Manaus; namorar as suas “sinceras e amorzinhos”
da vida; rezar muito nas igrejas de Aparecida e São Sebastião; curtir o seu Boi
Garantido (em Parintins) e o Círio de Nazaré (em Belém).
Possui
esperanças de um dia realizar o seu grande sonho, em reabrir o seu famoso “Saci
Bar”, vender a sua cerveja e camarão e, continuar a vida, uma vez e outra
aprontar, tanto quanto o Saci do nosso imaginário popular. É isso ai.
Fotografia: "Saci da Pareca, esse é o cara!", por José Martins Rocha.
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