Cidade de Parintins - uma das viagens preferidas do Zé Mundão era rumo à cidade de Parintins, município do Baixo Amazonas, para brincar de boi-bumbá. Foram tantas, que perdeu a conta, viajando sempre de barco regional. A mais marcante aconteceu quando serviu de cicerone a um sansei (filho de filho de japonês), legítimo paulistano do famoso bairro oriental da Liberdade. A turma do Zé gostava de marcar ponto no Boteco União, onde a galera fazia a concentração todo o final de semana. Certo dia apareceu por lá um sujeito vendendo passagens para o Festival Folclórico de Parintins, o caboclo era bom de gogó, tanto que conseguiu vender para a maioria do grupo. Era uma turma muito divertida, nada de violência, somente curtição nos botecos e nos clubes da cidade. O Zé então trabalhava numa empresa japonesa. Falou com seu superior e solicitou cinco dias, para compensar nas férias, para ir ao festival. Dois dias antes, seu chefe recebeu a ligação de um amigo de infância, cujo sujeito desejava ir a Parintins, num barco regional, a fim de conhecer as belezas da Amazônia, percorrendo o rio Amazonas. Que sorte, o Zé Mundão foi escalado para acompanhar o japonês. Ficou pouco receoso, pois viajaria com um bando de cachaceiros e gozadores. Agora, no meio daquela turma, um nisei todo metódico, certinho, não iria dar certo. Além do mais, o cicerone teria que se comportar ao máximo, pois o japa poderia falar para seu superior sobre suas peripécias durante a viagem, que, afinal, não seria nada bom na empresa. O japonês chamava-se Genésio, nome esquisito para um descendente do povo do sol nascente. Ele era jovem e um pouco descolado. Desde quando chegou, o Zé notou que ele tinha bastante bala na agulha, pois, rapidinho a empresa conseguiu uma casa em Parintins para acomodar o sujeito, posto que não havia mais vagas nos hotéis ou pousadas na cidade. Além disso, providenciaram lugar num camarote especial, para ele assistir no Bumbódromo as três noites de festival. Por ser o cicerone, o Zé foi contemplado com essas regalias. O barco saiu à noite no Porto de Manaus, o Roadway. Nele conseguiram pequeno espaço, onde foram atadas as redes de dormir, guardaram as bagagens e o Zé Mundão fez a apresentação do japonês à turma. Todos já estavam na área de lazer, tomando “água que passarinho não bebe”. Para sua surpresa, o japonês foi logo se enturmando, começou a contar algumas piadas, estava solto, mas bebia somente um “Chá Mugicha”, pois, segundo o mesmo, sua religião não permitia nem pensar em bebida alcoólica. Lá pelas tantas da noite, a turma já estava “Pra lá de Bagdá”, o japonês colado numa cabocla e dando aquele amasso na cunhantã e, de vez em quando, dava altas gargalhadas. Pasme, estava dançando pouco desajeitado as toadas de boi, além de ter aberto a carteira e pago todas. O Zé ficou desconfiado daquele chá que ele tomava na boca de um longo cantil em couro, tipo espanhol. A missão do Zé, todavia, era ficar na cola dele e cuidar de sua integridade física. Ainda assim, foi dormir, deixando o japonês virando bicho na área de lazer do barco. Quando acordou, às nove da manhã, e olhou para o lado, viu o japa dormindo juntinho com a cabocla, na mesma rede. O segurança ficou a pensar: “Esse ai não tem nada de tímido, bota é no toco!”. Recomeçou a movimentação no barco, com umas pessoas correndo para os banheiros, outras se acomodando nas imensas mesas para o café da manhã, e algumas já começavam os trabalhos no bar. Muitas mulheres já estavam a postos na área de lazer, para pegar aquele bronze. O DJ Tubarão detonava uns flashbacks, enquanto a banda de forró-boi se preparava para mais uma apresentação. Enfim, o dia prometia muitas emoções. A viagem de barco de Manaus a Parintins dura em torno de dezoito horas, com direito ao café da manhã e o almoço, tendo o vendedor de passagem assegurado que seria servido um café regional com dez itens. A turma do Zé foi conferir: pão, bolacha de motor, café, leite, Nescau, manteiga, queijo coalho, banana, mamão e abacaxi. Após forrar a pança, a corriola foi para a área de lazer, onde observou que o japa já tinha descartado a namorada, mas já tomava o misterioso chá de Mugicha no cantil e dava em cima de uma Raimunda (mulher mais feia que um processo, mas com um corpo escultural ou, em outra definição, feia de cara, mas boa de bunda). Soltava o japonês sonoras gargalhadas, dançava desajeitado o “dois pra lá, dois pra cá” e, bem melhor, abrira a carteira, começando a pagar cervejas para a negada. Zé aumentou sua desconfiança sobre aquele chá. Antes do almoço, o Zé foi até à cozinha, onde se preparava um cozidão de carne. Com aquela água na boca, pediu e foi gentilmente atendido com um copo do caldo, porém, quando deu o primeiro gole, viu um enorme cabelo. Como já tinha tomado todas, deu um grito:
– Caramba, se aqui no copo tem um cabelo, imagine dentro da panela, deve ter uma peruca!
Em resposta, a cozinheira correu atrás dele para dar-lhe uma panelada! Depois dessa, ficou proibido de almoçar. Nada falou para o japoca sobre o ocorrido, que desceu, sentou à mesa e almoçou numa boa. Comeu que nem um lutador de sumô, mas deve ter engolido, sem notar, alguns cabelos. Em seguida, continuou tomando aquele chá, com uma cara de quem estava pra lá de Hiroshima. Deitou-se na rede, roncou e soltou puns para todos os lados, parecia um kamikaze matando todo mundo de risos. Como já estivesse desconfiado, Mundão resolveu cheirar o cantil do samurai, quando tomou o maior susto, por isso, gritou:
– Caracas, isso aqui nunca foi um chá, tá parecendo com saquê!
Voltou para sua galera, falou da bebida do japoca e tudo o mais. Concluindo, era um cara muito diferente de seus pares, mulherengo, cara de pau, beberrão e mão aberta. Finalmente, chegaram à terra dos parintintins, a famosa Ilha Encantada, ocasião em que o Zé correu para acordar o visitante:
– Acorda, acorda, acorda samurai do saquê!
Ele respondeu ainda meio sonolento:
– A corda é minha e a rede também!
O Zé insistiu:
– Não é isso não, acorda, abre os olhos, japoca, chegamos à terra do Boi-Bumbá. Ele deu um pulo, desatou a rede, arrumou tudo, estava prontinho para mais três dias de festa. Zé pensou com seus botões: “O bicho vai pegar, vai ser uma loucura, eu e esse japonês vamos botar Parintins de cabeça para baixo!” Os dois se separaram dos amigos e se alojaram numa casa de uma vereadora de Parintins, com direito a suíte, com ar condicionado, duas camas, banheiro, aparelho de som, televisão e bastante mordomia, bem diferente dos anos anteriores, quando o Zé ficava hospedado nos barcos, passando um sufoco danado. O prefeito da cidade era um sujeito alcunhado de Carbrás, empresário maluco, pois o poder subiu-lhe à cabeça, tendo sido um desastre sua administração, tanto que seu mandato foi impugnado tempo depois, sofrendo o famoso impeachment. A vereadora que hospedou os dois, estava há seis meses sem receber os salários, simplesmente porque o prefeito não repassava as verbas, garantidas por lei, ao Poder Legislativo. Todos estavam sofrendo nas mãos daquele insensato.
O japonês Genésio tinha grana saindo pelo ladrão, tanto que resolveu bancar todas as despesas nos três dias em que estiveram hospedados, como forma de agradecimento pela estada e pela situação do Zé, sempre bastante braba. Estava também hospedada lá uma caboquinha linda, vinda da vizinha cidade de Juriti, interior do Pará. O japoca, como sempre, frágil no amor, sofreu logo uma paixonite pela cunhã, tanto que o cara resolveu não mais tomar seu famoso chazinho. Mudou do saquê para a água, o que o amor não faz! A primeira mudança dele foi afastar-se da turma do Zé Mundão. O negócio dele passou a ser tomar sorvetes e andar pela cidade de mãos dadas com sua cunhã poranga (a mulher mais bonita da tribo) de Juriti. Então, Zé deixou o japonês de lado, pois, a caboquinha tornou-se a cicerone. Foi com sua turma assistir à festa dos visitantes e, no dia seguinte, assistiu a primeira noite do festival nas arquibancadas (onde fica a galera que não paga ingresso), mesmo tendo à sua disposição as credenciais para entrar em qualquer parte do Bumbódromo. Retornou de madrugada, e resolveu dormir no chão, na sala de estar, debaixo de imensa mesa colonial, para não atrapalhar a noite de amor do japoca com sua cunhã. Lá pelas nove da manhã, a dona da casa acordou o Zé:
– Meu filho, deixei à sua disposição uma cama com ar condicionado e tudo o mais, e você resolve dormir no chão, embaixo da mesa!
O dorminhoco pediu desculpas, prometendo que não repetiria mais aquilo, todavia, promessa feita mas não cumprida! Na noite seguinte, Zé chegou calibrado e novamente dormiu no chão, agora do corredor da casa. Na segunda noite de festival, Zé ocupou um camarote com o japonês e sua namoradinha, mais a vereadora e seu marido. O problema maior para o Zé foi que todos que estavam lá eram evangélicos, rolava somente água mineral, sucos e refrigerantes, sem chance dele tomar uma cervejinha. Então, bateu uma saudade danada da sua turma de bagunceiros e cachaceiros, que estava lá nas arquibancadas. Naquele ano rolou uma grande rivalidade entre os “levantadores” de toadas (cantores): Júnior, do Caprichoso e o David, do Garantido. Umas das toadas que o Zé mais curtiu foi o Vento Norte, composição do amigo de infância Ariosto Braga e do José Cardoso. A letra é esta:
O vento norte / Que seduz minha razão / Assobia, e me banha de emoção / O amor errante / Paixão distan te / Azul é sempre cor de navegante / Vento que vem / Balançar canaranas no rio / Vento que traz / A saudade de quem já partiu...
Do lado do Garantido, sempre emocionou ao Zé a toada Vermelho, do Chico da Silva:
A cor do meu batuque / tem o toque, tem o som / da minha voz / Vermelho, vermelhaço / Vermelhusco, Vermelhante / Vermelhão. / O velho comunista se aliançou / Ao rubro do rubor do meu coração / He! Ho! He! Ho! No terceiro dia, foram visitar pela manhã a Vila Amazonas, a comunidade distante da sede uns vinte minutos de barco, local banhado pelo rio Amazonas e pelo Paraná do Ramos. A vila ficou conhecida devido a imigração japonesa e a produção industrial de juta, uma fibra vegetal introduzida pelo senhor Ryota Oyama. Lá se instalaram em torno de vinte famílias de koutakusseis (estudantes da escola japonesa Kokushikan) participantes do Projeto de Exploração da Mata Amazônica, mas que foram expulsas do local, em decorrência da Segunda Guerra, pois o Japão era inimigo do Brasil. Na visita, encontraram apenas um imponente prédio abandonado, que serviu de moradia para o mega empresário português J. G. Araújo. Nada mais lembrava que ali moraram centenas de japoneses, tudo fora destruído pela insanidade da guerra. À noite, antes de irem ao Bumbódromo, o japonês convidou o Zé para o jantar numa churrascaria no centro da cidade. Na realidade, ele queria desabafar um pouco, quando fez a seguinte declaração:
– Zé Mundão, na verdade, eu queria ser igual a você e seus colegas, tentei, mas não deu. Sou um japonês muito tímido e a minha criação foi muito rígida, tive que dar duro muito cedo para ajudar nos negócios da família. Meu pai ganhou muito dinheiro, montamos uma grande transportadora em São Paulo, com várias filiais no Brasil. Esta experiência está sendo bastante gratificante para mim, sinto-me livre e em paz. Estou muito orgulhoso de ter conhecido a Amazônia e sua gente, principalmente, você!
Zé quase chora com a sinceridade do japonês, assim os dois tornaram-se amigos do peito. Inclusive, o Genésio propôs levá-lo de avião para Manaus, seria seu convidado para passar alguns dias no Tropical Hotel, mas o convidado recusou. Deu um sincero abraço de despedida no novo amigo, e seguiu para o Bumbódromo, para se reencontrar com sua turma. Ele e os amigos voltaram de barco para Manaus, e nunca mais o Zé Mundão viu o “samurai do saquê”, nem teve notícias dele, restaram-lhe somente as lembranças de sua melhor viagem de barco a Parintins.