quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RIOS DA NOSSA ALDEIA




Milton Hatoum - fotos: José Martins Rocha.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Fernando Pessoa/Alberto Caeiro
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Mário de Andrade

Mário de Andrade concluiu o belo e longo poema Meditação sobre o Tietê em 12 de fevereiro de 1945. Morreu treze dias depois, reconciliado "com a dor humana pertinaz". Talvez seja um de seus poemas mais melancólicos e soturnos, escrito numa época em que a esperança na humanidade era uma espécie de alucinação dos alienados. O tema da Meditação não é a morte do Tietê. O rio é um dos ícones da metrópole, mas é também metáfora e testemunho da passagem do tempo: "o tempo de homens partidos", que culminou numa época obscura e trágica, no Brasil e no mundo.
O autor de Macunaíma não viu o maior rio de sua cidade morrer, como não tinha visto os rios da Amazônia agonizarem quando viajou para a região Norte em 1927.
O significado simbólico de um rio encontra-se nos poemas de grandes poetas. Os rios do Recife, evocados por Manuel Bandeira e João Cabral de Malo Neto. Ou o rio que corre pela minha aldeia, como escreveu um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Sem aspirar a qualquer ambição poética, penso nos rios da Amazônia, sobretudo o Negro, o afluente que justifica o porto onde nasci. O que seria de Manaus sem esse rio quase mítico que envolve a cidade e expande o seu horizonte? Afluente soberano do Amazonas, o rio Negro banha Manaus e nela se adentra, desdobra-se, multiplica-se com seus igarapés de margens habitadas por palafitas. Para as crianças manauaras de hoje, quais são os significados geográfico, cultural e simbólico de tantos igarapés, esses pequenos afluentes do rio Negro?
Em menos de vinte anos, os igarapés de Manaus tornaram-se canais poluídos onde nem um louco ousaria banhar-se. No entanto, nos anos 60, até os moradores do hospício de Flores freqüentavam os balneários públicos da cidade. Fugiam do inferno para nadar e mergulhar. Lembro da tarde em que um dos fugitivos foi capturado no balneário 15 de Novembro. Ele estava nu, brincando nas águas escuras e limpas do igarapé. Ria de tanta liberdade, os braços erguidos para o céu cheio de nuvens espessas como se fossem blocos de mármore.
O 15 de Novembro era um dos balneários mais populares de Manaus. O outro, o da Ponte da Bolívia, ficava mais longe, bem depois do fim da cidade, onde o mundo acabava e a nossa fantasia começava. Esses braços de rio eram, para muitos jovens de uma cidade ilhada, os cânticos do nosso encanto maior: a fantasia sexual. Sim, porque os clubes de campo promoviam festas carnavalescas à margem dos igarapés... Ou simplesmente festas, sem confetes nem serpentinas: bailes ao som de bolero que culminavam em danças aquáticas nas manhãs calorentas. Por isso os igarapés têm para mim um significado real e simbólico.
Paisagens vivas da cidade, esses caminhos de água foram fontes de prazer, leitos aquáticos de experiência erótica e encontro carnal. Na minha memória, o primeiro encontro com uma mulher aconteceu num desses balneários escondidos, quase clandestinos numa cidade ainda pequena e provinciana. Namoramos no rio, brincamos até o sol da tarde esquentar a água e a areia. Um namoro com tantos volteios e imersões... Amor sem palavras, como se fôssemos estranhos ou mudos... Depois deitamos no areal próximo da floresta e mergulhamos no sono de quem se esquece do mundo. No fim da tarde ela já não estava mais comigo. Na areia vi marcas dos nossos corpos, e as águas do igarapé trouxeram a lembrança de uma manhã-tarde de amor. Eu ainda a procurei no areal e depois no varadouro que conduzia à Ponte da Bolívia. Dois dias depois voltei ao balneário, mas não a encontrei.
Nas noites de carnaval daquele ano pensei encontrá-la em algum clube, ou em alguma festa que terminava na Praça da Polícia, onde os foliões banhavam-se no lago e nas fontes... Foi um carnaval sem muitas cores: meu último carnaval em Manaus, no ano do golpe militar de 1964.
Quando fui embora da cidade, os igarapés ainda viviam... Dez anos depois, na época ufanista de milagres (econômicos) efêmeros, esses pequenos rios começaram a morrer. Agora eu os vejo sem vida, córregos tristes e enlameados que cortam a cidade. Mas correm na memória como se fossem corpos banhados de sensualidade e erotismo. Rios corpóreos num mural que se move no tempo. Imagens embaçadas e distantes, que dão algum ânimo à época obscura em que vivemos.
Não sei por quanto tempo o rio Negro sobreviverá.
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Milton Hatoum é escritor, autor dos romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte. Fale com Milton Hatoum:
milton.hatoum@terra.com.br
Terra Magazine