DE BAR EM BAR
José Rocha
Parte I
Sou da Mana Manaus,
manauara da gema, escritor e boêmio igual ao meu saudoso pai Rochinha; conhecedor
e frequentador assíduo desde tempos idos de todos os botecos tradicionais da
nossa cidade, onde presenciei in loco muitos causos e causas perdidas em noites
quentes cheias de gentes sedentas de cervejas, músicas e corações para se
apaixonar e desapaixonar no dia seguinte.
O meu amigo de longas
datas, o Jack Cartoon, editor do O Ralho (a visão contestadora, humorística e
diária da realidade), pediu-me para fazermos uma parceria, para eu escrever as
minhas crônicas e ele fazer as caricaturas, topei na hora. Será uma honra.
A Mesa da Diretoria do Bar Caldeira                                         
        Até hoje é a preferida pelos mais
antigos por dar uma visão privilegiada de todo o interior do bar e ficar bem em
frente ao aparelho de televisão. Um lugar ótimo para assistir a um jogo de
futebol ou a apresentação de shows musicais interno. Por ser grande é a preferida para fazer
comemorações. Tradicionalmente, quem senta na cabeceira de qualquer mesa grande
é uma pessoa importante, o chefe superior ou o pai de família. Traz destaque e
status para a pessoa.  No Bar Caldeira é a
mesma coisa. No entanto, ficou famosa até os dias de hoje por outro motivo.
Segundo contam os mais antigos quem       
sentar-se, costumeiramente, na cabeceira e de costa para a parede está
chamando a morte, pois traz agouro, antecipando a lista da fila dos que irão
para o andar de cima. Se for lenda ou não, eu não sento lá de jeito nenhum. Na
realidade, aquele lugar é o preferido pela pessoa que bebe todo dia, pois
dificulta a sua visualização por quem passa 
à  pé  ou  de
carro. 
        Pavão
– É representante de laboratórios farmacêuticos. Grande músico e irmão do Mark
Clark e do Flávio de Souza. Nunca o vi bebendo no bar, no entanto passava todos
os finais de semana por lá, parava e olhava para dentro do bar e caso conhece o
sujeito que estava sentado na cabeceira da mesa, falava, na brincadeira: 
- Tu   vais   
 ser   o   primeiro
  da    fila! 
De
tanto tirar saro da cara dos outros foi apelidado de “Rasga Mortalha”.  
Tapinha – O seu prenome era Atalpha, mas por ser baixinho ficou conhecido no bar como Tapinha. Certa vez ele foi à missa de sétimo dia de um boêmio do Bar Caldeira, na Igreja de São Sebastião, ele chegou atrasado e bêbado, ao entrar falou bem alto:
-
Falavam que eu era o primeiro da fila, né? Tô nem ai. Ainda irei enterrar muita
gente, incluindo até o padre que está ai no altar!                     
A
galera do Bar Caldeira estava em peso, todo mundo começou a rir, incluindo a
viúva, os parentes e até o padre e os coroinhas.  O Tapinha continuou sentando na cabeceira da Mesa da Diretoria e
tempos
depois atravessou o espelho. O seu filho, o Athalpa Filho, sucedeu ao pai na
boêmia. Frequentava o Bar Caldeira aos domingos.  Ele tinha um mote: 
- Prefiro  ser  corno  a
 ser 
diabético!
Certa
vez, o Athalpa estava em companhia do advogado Dr. Marco Aurélio, conhecido por
“Barrão”, os dois estavam bebendo no Caldeira, quando passou por lá a namorada
do Sacy da Pareca, a “Sincera”, ela estava com um shortinho e sapatos altos,
desfilando pela José Clemente, quando ia descer o ladeirão da Lobo D´Álmada caiu no chão, essa
Athalpa deu uma risada bem alta e ficava apontando para ela. Depois dessa, a
Sincera nunca mais apareceu por lá.   Quando
ele ia ao bar ficava admirando a foto de seu pai ao lado do Vinicius de Moraes.
Infelizmente, não resistiu a Covid-19 vindo  
a   falecer   em  
dezembro  de  2020.
          Doutor Lió – Era um dentista da melhor
qualidade. Querido por todos. Foi um bom amigo. Era espiritualista. Gozador
nato e tirava saro de tudo e de todos. Fumava que nem uma caipora. Era
inveterado por cigarros. Em 2011 foi aprovada a Lei 12.546 chamada Lei Antifumo
que proibia fumar em todo país em ambientes fechados públicos e privados.
Apesar de ainda não ser regulamentada, o que somente aconteceu em 2014, o
Adriano Cruz, colocou um aviso proibindo expressamente os clientes fumarem
dentro do bar. A lei estabelecia multas e até a perda da licença de
funcionamento em caso de desrespeito a norma. A segunda providência foi jogar
no lixo todos os cinzeiros.  Falava em
voz alta:                                      
- Quem quiser fumar, que fume, porém,
lá fora, aqui dentro, não! Agora é lei. Leia o aviso na parede.                                                     
Foi
complicado. Muitos não aceitavam e teimavam em fumar no interior do
estabelecimento, o que eram na hora repreendidos. O Doutor Lió   era   a   única exceção.                                                         
Sempre após o expediente batia o ponto no bar e o seu lugar preferido era exatamente àquele em que a maioria fugia por ser agourento: a cabeceira da Mesa da Diretoria, de costas para a parede. Meu Deus. O seu filho mais velho sempre ia ao bar pegar uma grana com o pai, depois que o primogênito saía, ele falava:
- O filho passa nove meses na
barriga da mãe e o resto da vida colocando no do pai! – ficava batendo a
mão direita aberta na mão esquerda fechada.                      
Era
tudo brincadeira, pois amava e admirava muito os seus filhos. Quando levantava
para “tirar água do joelho” falava: 
- Agora vou pegar no pesado! – referindo ao   seu bilau.
Segundo
a atriz Socorro Papoula, ele tinha várias namoradas, mas possuía uma preferida,
era uma enfermeira baixinha e bonitinha. Após tomar todas, pagava a conta e
dizia:                                     
         - Agora vou prá casa fazer sexo, a minha namorada Juceta já me ligou
várias vezes! – era   a   sua preferida.
Passou
uma temporada sem fumar. Ficou abstêmio da nicotina. Quando alguém perguntava o
que ele fez para parar de fumar,
respondia:
- Prometi a mim mesmo se voltasse a
fumar daria o traseiro duas vezes por semana!  
Não
cumpriu a promessa e voltou a fumar novamente. Com o tempo apareceu o nódulo no
pescoço, foi crescendo lentamente. Um dia reuniu alguns amigos do bar, entre
eles o Adriano, Miudinho e o Jorginho, foram para Maués, no navio Dona Carlota.
Ninguém sabia, mas estava se despedindo dos amigos e da vida. Morreu de câncer
pouco tempo depois. Será sempre lembrado por 
todos  os velhos   boêmios.
      
O Lanterninha Farias
– Trabalhou por longos anos no Cine Guarany ajudando assentar as pessoas
que chegavam atrasadas, pois com a sua lanterninha sabia perfeitamente onde
existiam cadeiras vazias.               Ele
era um cara que tinha uma grande cabeleira, tirando a todo instante do bolso um
pente da marca “Flamengo” para penteá-la. Usava sempre um enorme óculo de sol,
acho que se inspirava em algum ator de cinema das antigas, além de ter um
vozeirão daqueles e falava pelos cotovelos, parecia com aquele comediante
famoso, o “Zé Bonitinho”. O cinema era frequentado por um grupo especial
formado pelo Jeremias, Mococa e outros rapazes alegres, que davam em cima da
molecada.  O Farias sempre ficava de olho
nessa turma que aproveitava a escuridão para alisar os marmanjos. Muitos anos
depois, reencontrei o Lanterninha Farias, no Bar Caldeira, pois ele morava por
aquelas imediações. Conversamos muito sobre o nosso saudoso Cine Guarany, lembrando
e sorrindo dos velhos e bons tempos que não voltarão jamais.  Aparecia somente aos domingos quando a Velha
Guarda se apresentava. Bebia somente no lado de fora do bar. Era invocado com a
Mesa da Diretoria, falava que ela trazia agouro e quem ali se abancasse por um
bom tempo, faleceria precocemente. Coisas de louco. Passou uma temporada
enchendo “a cara” debaixo de uma árvore frondosa, no Bar Mangueira, vindo a
falecer tempos depois. De nada adiantou fugir tanto da Mesa da Diretoria.
Artista Plástico Palheta – Era frequentador assíduo do Bar Caldeira. Tive o privilegio de conhecer dezenas de trabalhos realizados pelo grande artista plástico, bem como, de usufruir da sua amizade e de ter tido a oportunidade de conhecer alguns causos muitos hilários, tendo como personagem principal o nobre amigo. Trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, no período de 1975 a 1980, na respeitada função de ilustrador botânico. Tinha uma capacidade incrível para retratar o rosto humano, chegando até ser colaborador da Polícia Civil, fazendo o famoso “retrato Durante todos esses anos de amizade, sempre o apoiei, valorizando os seus trabalhos artísticos, com publicações no BLOGDOROCHA, além de passarmos horas conversando, rindo das piadas e causos que somente ele sabia contar. Gostava de sentar-se somente na Mesa da Diretoria, pois era um artista considerado por todos. Viva somente de seu trabalho, no entanto, passava meses sem vender nenhuma obra, o que o deixava cabisbaixo, mesmo assim não deixava de frequentar o bar e os amigos do peito sempre pagavam umas ampolas para ele. Quando estava “Barão”, andava bem vestido “no linho”, levantava os ombros e a cabeça e pedia somente doses de Uísque. Falavam que ele ficava esnobe e chato (boçal), mas era “mão aberta” e fazia questão de retribuir pagando cervejas para aqueles que ele “serrava”, brindando até com tira-gosto de Queijo Bola. Quando a fonte secava, voltava novamente a “estaca zero”. Era o momento para armar-se de sua prancheta, papel A4, lápis e borracha para fazer caricaturas no Bar Caldeira, principalmente aos domingos à tarde quando se reunia a velha guarda mais abastada financeiramente. Certa vez, ele contou-me um acontecido no bar: chegou por lá um sujeito que ninguém conhecia, ele ficou a observar o Palheta fazendo o seu digno trabalho, chegou perto e falou-lhe:
- O amigo pode fazer a minha abreugrafia?                                     
O Palheta arregalou os olhos e disparou:
- Olha aqui meu amigo, sou o artista
plástico Palheta e faço caricaturas, quem faz      abreugrafias     é     ali         
embaixo       na  
Rua  Lobo  D´Álmada, vai lá e      procura       o      Ambulatório           Cardoso      Fontes!
O
cara insistiu: 
- Faz essa porra ai mermo!                                     
O
Palheta levantou-se, tufou o peito e pensou “Puta
que o pariu, seu eu não estivesse liso e com duas contas de luz atrasadas eu
daria umas porradas neste tuberculoso, somente para respeitar o trabalho do
artista plástico”.  Mesmo assim fez
um trabalho caprichado e pelo abuso do camarada cobrou  
dobrado pela abreugrafia.
Outra
vez, a jornalista Hermengarda Junqueira, do Jornal Amazonas Em Tempo,
encomendou uma obra do Palheta. Trancou-se em seu ateliê na Rua Maués, no
bairro da Cachoeirinha e fez um belo trabalho. Ele estava “mais liso do que
sabão na tábua”. O jeito foi ir de ônibus até o bairro do Aleixo onde ficava a
sede o jornal. O busão estava lotado, colocou o quadro na cabeça e foi em pé.
Ficava esbarrando em todo mundo. Um cidadão falou: 
- Não dá para o senhor abaixar essa
Tábua de Pirulito!   
Pense
num cara puto de raiva:                                          
- Isto aqui é uma obra de arte. Tábua de Purulito é o caralho!
Quando chegar lá depois de muito sacrifício, a jornalista falou:
- Passe daqui uma semana para receber o
seu dinheiro!                    
Ai foi para acabar de vez com o artista:
- Pelo o amor de Deus! Tô na lisura. Vim
de ônibus e fui xingado por todos.   Sem    chance. 
                   Pague        pelo        menos    a      metade          agora!
Ela ficou sensibilizada e pagou tudo no monte. Ai foi graça. Pagou as contas atrasadas e foi direto para o Bar Caldeira, sentou-se na Mesa da Diretoria e começou a tomar Uísque com queijo bola, é claro!
Outra vez, ele e o artista plástico Inácio Evangelista foram contratados
para fazerem a ornamentação de carnaval do Clube Sírio Libanês, na Avenida
Constantino Nery. Quando estava tudo pronto, chegou o promoter da festa para fazer a verificação dos trabalhos.
Falou:         
- Quem fez esta decoração? 
O
Palheta “subiu nas tamancas”: 
- Olha aqui, meu amigo, decoração é coisa de viado. Eu e o Inácio somos artistas plásticos e fazemos uma obra de arte e não decoração!
O
Evangelista só achava graça  da   onda  
do     Palheta. 
        Teve problemas sérios de saúde e veio a
falecer em agosto de 2015. Hoje, as suas obras impressionistas       e  
abstracionistas  estão  muito  valorizadas
em Manaus.
        A Turma do Meio-Dia –
Existe uma turma que desde tempos idos gosta de beber quando relógio bate
meio-dia, na hora do almoço. Falam que é para abrir o apetite. Geralmente a
pedida é cerveja, cachacinha, limão e sal. Isto é tradição.  Passa o tempo, alguns deles partem para o andar
de cima, chegam     outros,       sempre             renovando.
Detalhe: eles somente gostam de sentar
exatamente na Mesa da Diretoria, sempre existindo um deles na cabeceira   de 
costas  para   a  
parede.   
Cruz, credo!