domingo, 3 de outubro de 2021

A MESA DA DIRETORIA DO BAR CALDEIRA

Até hoje é a preferida pelos mais antigos por dar uma visão privilegiada de todo o interior do bar e ficar bem em frente ao aparelho de televisão. Um lugar ótimo para assistir a um jogo de futebol ou a apresentação de shows musicais interno. Por ser grande é a preferida para fazer comemorações. Tradicionalmente, quem senta na cabeceira de qualquer mesa grande é uma pessoa importante, o chefe superior ou o pai de família. Traz destaque e status para a pessoa. No Bar Caldeira é a mesma coisa. No entanto, ficou famosa até os dias de hoje por outro motivo. Segundo contam os mais antigos quem sentar-se, costumeiramente, na cabeceira e de costa para a parede está chamando a morte, pois traz agouro, antecipando a lista da fila dos que irão para o andar de cima. Se for lenda ou não, eu não sento lá de jeito nenhum. Na realidade, aquele lugar é o preferido pela pessoa que bebe todo dia, pois dificulta a sua visualização por quem passa à pé ou de carro.
Pavão – É representante de laboratórios farmacêuticos. Grande músico e irmão do Mark Clark e do Flávio de Souza. Nunca o vi bebendo no bar, no entanto passava todos os finais de semana por lá, parava e olhava para dentro do bar e caso conhece o sujeito que estava sentado na cabeceira da mesa, falava, na brincadeira: - Tu vais ser o primeiro da fila!
De tanto tirar saro da cara dos outros foi apelidado de “Rasga Mortalha”.
Tapinha – O seu prenome era Atalpha, mas por ser baixinho ficou conhecido no bar como Tapinha. Certa vez ele foi à missa de sétimo dia de um boêmio do Bar Caldeira, na Igreja de São Sebastião, ele chegou atrasado e bêbado, ao entrar falou bem alto: - Falavam que eu era o primeiro da fila, né? Tô nem ai. Ainda irei enterrar muita gente, incluindo até o padre que está ai no altar! A galera do Bar Caldeira estava em peso, todo mundo começou a rir, incluindo a viúva, os parentes e até o padre e os coroinhas. O Tapinha continuou sentando na cabeceira da Mesa da Diretoria e tempos depois atravessou o espelho. O seu filho, o Athalpa Filho, sucedeu ao pai na boêmia. Frequentava o Bar Caldeira aos domingos. Ele tinha um mote: - Prefiro ser corno a ser diabético!
Certa vez, o Athalpa estava em companhia do advogado Dr. Marco Aurélio, conhecido por “Barrão”, os dois estavam bebendo no Caldeira, quando passou por lá a namorada do Sacy da Pareca, a “Sincera”, ela estava com um shortinho e sapatos altos, desfilando pela José Clemente, quando ia descer o ladeirão da Lobo DÁlmada caiu no chão, essa Athalpa deu uma risada bem alta e ficava apontando para ela. Depois dessa, a Sincera nunca mais apareceu por lá. Quando ele ia ao bar ficava admirando a foto de seu pai ao lado do Vinicius de Moraes. Infelizmente, não resistiu a Covid-19 vindo a falecer em dezembro de 2020.
Doutor Lió – Era um dentista da melhor qualidade. Querido por todos. Foi um bom amigo. Era espiritualista. Gozador nato e tirava saro de tudo e de todos. Fumava que nem uma caipora. Era inveterado por cigarros. Em 2011 foi aprovada a Lei 12.546 chamada Lei Antifumo que proibia fumar em todo país em ambientes fechados públicos e privados. Apesar de ainda não ser regulamentada, o que somente aconteceu em 2014, o Adriano Cruz, colocou um aviso proibindo expressamente os clientes fumarem dentro do bar. A lei estabelecia multas e até a perda da licença de funcionamento em caso de desrespeito a norma. A segunda providência foi jogar no lixo todos os cinzeiros. Falava em voz alta: - Quem quiser fumar, que fume, porém, lá fora, aqui dentro, não! Agora é lei. Leia o aviso na parede. Foi complicado. Muitos não aceitavam e teimavam em fumar no interior do estabelecimento, o que eram na hora repreendidos. O Doutor Lió era a única exceção.
Sempre após o expediente batia o ponto no bar e o seu lugar preferido era exatamente àquele em que a maioria fugia por ser agourento: a cabeceira da Mesa da Diretoria, de costas para a parede. Meu Deus. O seu filho mais velho sempre ia ao bar pegar uma grana com o pai, depois que o primogênito saía, ele falava: - O filho passa nove meses na barriga da mãe e o resto da vida colocando no do pai! – ficava batendo a mão direita aberta na mão esquerda fechada. Era tudo brincadeira, pois amava e admirava muito os seus filhos. Quando levantava para “tirar água do joelho” falava: - Agora vou pegar no pesado! – referindo ao seu bilau. Segundo a atriz Socorro Papoula, ele tinha várias namoradas, mas possuía uma preferida, era uma enfermeira baixinha e bonitinha. Após tomar todas, pagava a conta e dizia: - Agora vou prá casa fazer sexo, a minha namorada Juceta já me ligou várias vezes! – era a sua preferida.
Passou uma temporada sem fumar. Ficou abstêmio da nicotina. Quando alguém perguntava o que ele fez para parar de fumar, respondia: - Prometi a mim mesmo se voltasse a fumar daria o traseiro duas vezes por semana! Não cumpriu a promessa e voltou a fumar novamente. Com o tempo apareceu o nódulo no pescoço, foi crescendo lentamente. Um dia reuniu alguns amigos do bar, entre eles o Adriano, Miudinho e o Jorginho, foram para Maués, no navio Dona Carlota. Ninguém sabia, mas estava se despedindo dos amigos e da vida. Morreu de câncer pouco tempo depois. Será sempre lembrado por todos os velhos boêmios.
O Lanterninha Farias – Trabalhou por longos anos no Cine Guarany ajudando assentar as pessoas que chegavam atrasadas, pois com a sua lanterninha sabia perfeitamente onde existiam cadeiras vazias. Ele era um cara que tinha uma grande cabeleira, tirando a todo instante do bolso um pente da marca “Flamengo” para penteá-la. Usava sempre um enorme óculo de sol, acho que se inspirava em algum ator de cinema das antigas, além de ter um vozeirão daqueles e falava pelos cotovelos, parecia com aquele comediante famoso, o “Zé Bonitinho”. O cinema era frequentado por um grupo especial formado pelo Jeremias, Mococa e outros rapazes alegres, que davam em cima da molecada. O Farias sempre ficava de olho nessa turma que aproveitava a escuridão para alisar os marmanjos. Muitos anos depois, reencontrei o Lanterninha Farias, no Bar Caldeira, pois ele morava por aquelas imediações. Conversamos muito sobre o nosso saudoso Cine Guarany, lembrando e sorrindo dos velhos e bons tempos que não voltarão jamais. Aparecia somente aos domingos quando a Velha Guarda se apresentava. Bebia somente no lado de fora do bar. Era invocado com a Mesa da Diretoria, falava que ela trazia agouro e quem ali se abancasse por um bom tempo, faleceria precocemente. Coisas de louco. Passou uma temporada enchendo “a cara” debaixo de uma árvore frondosa, no Bar Mangueira, vindo a falecer tempos depois. De nada adiantou fugir tanto da Mesa da Diretoria.
Artista Plástico Palheta – Era frequentador assíduo do Bar Caldeira. Tive o privilegio de conhecer dezenas de trabalhos realizados pelo grande artista plástico, bem como, de usufruir da sua amizade e de ter tido a oportunidade de conhecer alguns causos muitos hilários, tendo como personagem principal o nobre amigo. Trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, no período de 1975 a 1980, na respeitada função de ilustrador botânico. Tinha uma capacidade incrível para retratar o rosto humano, chegando até ser colaborador da Polícia Civil, fazendo o famoso “retrato falado”. Durante todos esses anos de amizade, sempre o apoiei, valorizando os seus trabalhos artísticos, com publicações no BLOGDOROCHA, além de passarmos horas conversando, rindo das piadas e causos que somente ele sabia contar. Gostava de sentar-se somente na Mesa da Diretoria, pois era um artista considerado por todos. Viva somente de seu trabalho, no entanto, passava meses sem vender nenhuma obra, o que o deixava cabisbaixo, mesmo assim não deixava de frequentar o bar e os amigos do peito sempre pagavam umas ampolas para ele. Quando estava “Barão”, andava bem vestido “no linho”, levantava os ombros e a cabeça e pedia somente doses de Uísque. Falavam que ele ficava esnobe e chato (boçal), mas era “mão aberta” e fazia questão de retribuir pagando cervejas para aqueles que ele “serrava”, brindando até com tira-gosto de Queijo Bola. Quando a fonte secava, voltava novamente a “estaca zero”. Era o momento para armar-se de sua prancheta, papel A4, lápis e borracha para fazer caricaturas no Bar Caldeira, principalmente aos domingos à tarde quando se reunia a velha guarda mais abastada financeiramente. Certa vez, ele contou-me um acontecido no bar: chegou por lá um sujeito que ninguém conhecia, ele ficou a observar o Palheta fazendo o seu digno trabalho, chegou perto e falou-lhe: - O amigo pode fazer a minha abreugrafia? O Palheta arregalou os olhos e disparou: - Olha aqui me amigo, sou o artista plástico Palheta e faço caricaturas, quem faz abreugrafias é ali embaixo na Rua Lobo D´Álmada, vai lá e procura o Ambulatório Cardoso Fontes!
O cara insistiu: - Faz essa porra ai mermo! O Palheta levantou-se, tufou o peito e pensou “Puta que o pariu, seu eu não estivesse liso e com duas contas de luz atrasadas eu daria umas porradas neste tuberculoso, somente para respeitar o trabalho do artista plástico”. Mesmo assim fez um trabalho caprichado e pelo abuso do camarada cobrou dobrado pela abreugrafia.
Outra vez, a jornalista Hermengarda Junqueira, do Jornal Amazonas Em Tempo, encomendou uma obra do Palheta. Trancou-se em seu ateliê na Rua Maués, no bairro da Cachoeirinha e fez um belo trabalho. Ele estava “mais liso do que sabão na tábua”. O jeito foi ir de ônibus até o bairro do Aleixo onde ficava a sede o jornal. O busão estava lotado, colocou o quadro na cabeça e foi em pé. Ficava esbarrando em todo mundo. Um cidadão falou: - Não dá para o senhor abaixar essa Tábua de Pirulito! Pense num cara puto de raiva: - Isto aqui é uma obra de arte. Tábua de Purulito é o caralho!
Ao chegar lá depois de muito sacrifício, a jornalista falou: - Passe daqui uma semana para receber o seu dinheiro! Ai foi para acabar de vez com o artista: - Pelo o amor de Deus! Tô na lisura. Vim de ônibus e fui xingado por todos. Sem chance. Pague pelo menos a metade agora!
Ela ficou sensibilizada e pagou tudo no monte. Ai foi graça. Pagou as contas atrasadas e foi direto para o Bar Caldeira, sentou-se na Mesa da Diretoria e começou a tomar Uísque com queijo bola, é claro! Outra vez, ele e o artista plástico Inácio Evangelista foram contratados para fazerem a ornamentação de carnaval do Clube Sírio Libanês, na Avenida Constantino Nery. Quando estava tudo pronto, chegou o promoter da festa para fazer a verificação dos trabalhos. Falou: - Quem fez esta decoração? O Palheta “subiu nas tamancas”: - Olha aqui, meu amigo, decoração é coisa de viado. Eu e o Inácio somos artistas plásticos e fazemos uma obra de arte e não decoração! O Evangelista só achava graça da onda do Palheta.
Teve problemas sérios de saúde e veio a falecer em agosto de 2015. Hoje, as suas obras impressionistas e abstracionistas estão muito valorizadas em Manaus.
A Turma do Meio-Dia – Existe uma turma que desde tempos idos gosta de beber quando relógio bate meio-dia, na hora do almoço. Falam que é para abrir o apetite. Geralmente a pedida é cerveja, cachacinha, limão e sal. Isto é tradição. Passa o tempo, alguns deles partem para o andar de cima, chegam outros, sempre renovando.
Detalhe: eles somente gostam de sentar exatamente na Mesa da Diretoria, sempre existindo um deles na cabeceira de costas para a parede. Cruz, credo!
Certa vez, fui cortar o cabelo na Rua José Clemente. Depois, parei no Bar Caldeira, para conversar com uma turminha que toma uns goles após o almoço. Na famosa Mesa Da Diretoria estava uma sacola cheia de Tamarinos. Pela primeira vez em minha vida provei do fruto. Guardei duas sementes não sei por quê.
O tempo passou.
Dias depois dei um trato em minha mochila encontrei as duas sementes.
Sem nada ler sobre técnicas de plantio, coloquei as duas num algodão embebecido de água dentro de uma cuia, como fazíamos quando éramos crianças.
Dias depois uma delas brotou.
Adotei-a. Pus num vasinho, coloco água, ponho para receber sol na janela.
Com é apenas uma criança, fica ao lado do meu computador onde escrevi parte deste livro.
Serve de inspiração.
Caso consiga sobreviver, levarei daqui uns anos uns dos seus frutos ao Bar Caldeira, para servir de tira gosto na Mesa da Diretoria.
(Bar Caldeira, História & Tradição, José Rocha).
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