Teque-Teque, palita baratas e outros tipos de Mascates ( Mario Ypiranga )
Havia necessariamente uma hierarquia de gênero entre os antigos mascates que proliferaram em Manaus até mais ou menos 1940, quando ainda conheci o último deles, na rua Costa Azevedo. Podiam ser elencados em duas classes: primeiramente: ambulantes e sedentários. Os sedentários ocupavam todo o trecho da rua Marquês de Santa Cruz, desde a mercearia A COSMOPOLITA, fronteiriça ao prédio da Alfândega, até o mercado municipal ADOLFO LISBOA (interior e exterior) e rua da Instalação da Província, trechos de circulação intensiva de pedestres. Eram de dois tipos: os que portavam baú de lata e estacionavam na calçada e os que possuíam barracas cobertas de lona listrada. Estes últimos ocupavam todo o perímetro do atual estacionamento público e as quatro faces em torno da antiga estátua de Tenreiro Aranha. O local passou a ser conhecido por Caaba, por causa, evidentemente, dos distúrbios provocados pelos ávidos comerciantes entre si mesmos e os passantes, a gritaria incomodativa dos pregões, os apelos ao mais barato e melhor, a propaganda, os insultos em árabe. Todos os bufarinheiros de baú de lata já eram denominados “marreteiros” em 1900, consoante notícia do jornal A FEDERAÇÃO de dez de maio, solicitada do mesmo jornal ao Superintendente Municipal contra o hábito deles colocarem suas malas no meio da rua Marquês de Santa-Cruz, “interrompendo o tráfego”. Os negocistas ambulantes geralmente iniciavam o curso com a trouxinha de pano ou a caixa de bufarinhas. Mas somente as mulheres portavam a trouxinha e eu conheci na minha meninice a uma delas de nome Labibe. O comerciante de caixa a frente da barriga era o “barateza”, conhecido por proclamar este nome. Daquele grau poderia subir mais até à função de teque-teque. O “palita-barata” só negociava com fósforos importados ou fabricados em Manaus na Cachoeirinha. Trazia costumeiramente a tiracolo uma lata quadrada de estanho ou folha de chumbo onde vinham os maços embalados desde a origem. Apregoava pelas ruas — Palita barata! Ja o teque-teque era mais aperfeiçoado no seu ramo de negócio, que é aliás de origem portuguesa, muito embora de portugueses não se tenha notícia no tipo de vendilhão. Pelo menos é o que se informa em Ramalho Ortigão, que o descreve em Portugal. Arcava com cerca de quarenta quilos de variedades necessárias, que era o peso normal da caixa de armarinho, com bem arrumado sortimento e dotada de portinhas e escaninhos tapados com vidro, a “caixa-de-turco”, geralmente denominada pelo vulgo. Naquele exíguo almário havia de tudo, desde o papel de alfinetes à dentadura postiça, cosméticos, bigodeiras, óculos de aros de alumínio, ceroulas, peúgas, rendas, novelos de lã, tesourinhas, pentes, colarinhos e punhos duros, etc. Sobre o almário iam dispostas algumas peças inteiras de fazenda, morins, chitinhas mamãe-abre-olho ou piraurucu, toalhas felpudas e de mesa, lençóis, poucos vestidos já prontos ou apenas alinhavados, blusas de pijamas com alamares, etc. E na curva do braço livre um ou dois guarda-chuvas, de acordo com o tempo, e mais troços vendáveis, consoante o faro comercista. Numa das mãos o teque-teque levava o metro seccionado em dois pedaços unidos por sola e com eles alertava a freguesia distante em ritmo de matraca. Descansava geralmente das longas jornadas numa calçada alta, libertando-se das ombreiras de sola forradas de pano. Era assim que se via sempre aquele mascate morador na rua Costa Azevedo. Ali pela década de vinte, talvez, apareceu uma cançoneta alusiva ao comerciante. Não consegui reter todo o texto, apenas o início e a música. Dizia: Eu sê turca chama Jurja / passa a vida disgraçada / trabalha dia intera / pra vender tuda fiada / eu vende a bresdazon / eu vende pra dinera/ Jurja fica danada / que freguês é galotera. Por aí assim, e falava em “golarinho bunda virada”, “pente fina pra biolho marca elefante”, “bó darruz”, etc. Os mascates ambulantes, não escapavam à verve popular, que os maltratava com epítetos de ladrão, careiro, explorador, marreteiro. Mas os meninos faziam pior: gritavam de longe — Caga sebo! Caga sebo! Não havia muitos turcos em Manaus, porém o povo generalizava a casta de mercadores ambulantes, envolvendo-os no mesmo grupo dos sírio-libaneses. O que motivava o vendilhão a percorrer longas distâncias sob o sol e a chuva era a centralização do comércio, reduzido ao foco — avenida Eduardo Ribeiro, ruas da Instalação da Província e Marquês de Santa-Cruz, Remédios e mercado publico municipal. Quase todos os mascates sírio-libaneses residiam na área-chamariz que era o populoso bairro dos Remédios. Dali eles partiam em leque para todos os cantos da cidade, inclusive para o rio, pois que os havia igualmente embarcados em canoas, a tentar a freguesia dos motores e lanchas. Progrediam astuciosamente, plantavam-se em portinhas exíguas e mais tarde em lojas de várias portas. Um dos clássicos mascates que sempre conheci era o Mansour da rua da Instalação da Província. Outro foi o pai do jogador L6, um turco que se mandou para Salônica após a Primeira Guerra Mundial. Mas esse era mesmo turco, tão turco como o Jorge Dau. O povo na sua festiva indiferença pelas origens englobava as nacionalidades, falando de “turcalhada” quando se referia aos nossos amigos árabes. Mas sem malícia. O ambulante citadino não se recusava a vender fiado. Era um risco que corria, e certamente grande, quando se tratava de cercar a bolsa do pobre. Vi muitos deles com sua caderneta de notas (sempre em árabe) sacramentando o débito do freguês ou do “patrícia” (porque na sua necessidade de transacionar era obrigado a identificar-se e a tutear o comprador em perspectiva ou mesmo o freguês cativo). No meu tempo de rapaz alcancei ouvir muitas anedotas a propósito do mascate, que como figura popular não podia deixar de freqüentar o anedotário. Uma delas inclusive era comumente citada para mexer com certo mocinho inimigo do trabalho e esperto devorador do capital paterno. Dizia-se que certa noite o fedelho chegou-se ao pai e exigiu uma lambreta. O pai concordou e no dia seguinte apresentou ao filho um novelo de lã de cor preta. E outras. O comerciante Jorge Dau acima citado como exemplo, era turco de nação e fundaria mais tarde a grande loja de fazendas ARMAZÉM DA TURQUIA, cuja sede não me foi possível ainda localizar. O Mansour e o Bader, este um dos palita-barata, também progrediram e foram donos de lojas de fazendas na rua da Instalação da Província. Outros, teque-teques, como o senhor Mamede, libertaram-se da caixa de armarinho e passaram a lojistas muito afreguesados, inclusive dentro do mercado público. Quando esses mascates desapareceram de circulação, já estavam com o capital solidificado e tornaram-se até grandes proprietários de imóveis, mas realmente jamais tiveram inclinação para a indústria. Muito dificilmente os filhos se deixaram contaminar pelo micróbio comercista, tomaram outras direções na vida, adquirindo títulos liberais e/ou acomodando-se em funções burocráticas. Hoje quase nada mais resta daquela multidão de árabes e de otomanos que contribuiu de certa forma para o progresso da cidade. Seria o caso para relembrarmos a figura andeira do regatão (cuja origem nunca foi arábica) que levava aos mais distantes rincões fluviais um pouco da comodidade gozada nas cidades. O bufarinheiro levantino tornou-se uma necessidade gerada pela centralização do comércio urbano, mas hoje seria mais difícil a sua resistência porque a descentralização estendeu os raios da oferta aos mais longínquos arrabaldes da capital. Quero acreditar que no início de sua carreira comercial o mascate passasse da banda baixa, comendo mal e dormindo em cortiços e estâncias, que os havia em profusão por toda a rua doutor Miranda Leão, dos Andradas, Barão de São Domingos, da Praia. Ele saía de casa pela manhã com um pão sirio da estrutura de um prato e da espessura de dois dedos mais ou menos. Quando a fome do meio-dia o surpreendesse, não voltaria aos penates: arriava a matalotagem na calçada ou num local discreto e comia seu pão descansadamente. Assim o vimos obrar quando menino curioso. E a indumentária era simples e vasqueira: contava meu pai que os primeiros árabes chegados a Manaus ainda traziam velhos hábitos, do tipo usar a túnica comprida e o gorro (vide figura do barateza) ou o fez. Calculo como foram recebidos pelo povo e bem depressa abandonaram as roupas estranhas para os misoneístas. Todavia pelo carnaval muitos deles aproveitavam para relembrar seus costumes. Isso não seria de admirar porquanto custou aos portugueses deixar o costume de usar a banda vermelha, as calças de pano cru, a camisa de Saragoza e os barulhentos socos de pau. Muitos árabes usavam brincos de ouripel e argolas. Sobre a carência de documentação fotográfica dos tipos populares, existem duas respostas: a história de antigamente não lidava com o indivíduo social e sim com o herói, as datas e os fatos. Os documentos, poucos, fotográficos, são difíceis de reproduzir, mas encontrei alguns principalmente mascates com baú de lata e quiosques de madeira.
Havia necessariamente uma hierarquia de gênero entre os antigos mascates que proliferaram em Manaus até mais ou menos 1940, quando ainda conheci o último deles, na rua Costa Azevedo. Podiam ser elencados em duas classes: primeiramente: ambulantes e sedentários. Os sedentários ocupavam todo o trecho da rua Marquês de Santa Cruz, desde a mercearia A COSMOPOLITA, fronteiriça ao prédio da Alfândega, até o mercado municipal ADOLFO LISBOA (interior e exterior) e rua da Instalação da Província, trechos de circulação intensiva de pedestres. Eram de dois tipos: os que portavam baú de lata e estacionavam na calçada e os que possuíam barracas cobertas de lona listrada. Estes últimos ocupavam todo o perímetro do atual estacionamento público e as quatro faces em torno da antiga estátua de Tenreiro Aranha. O local passou a ser conhecido por Caaba, por causa, evidentemente, dos distúrbios provocados pelos ávidos comerciantes entre si mesmos e os passantes, a gritaria incomodativa dos pregões, os apelos ao mais barato e melhor, a propaganda, os insultos em árabe. Todos os bufarinheiros de baú de lata já eram denominados “marreteiros” em 1900, consoante notícia do jornal A FEDERAÇÃO de dez de maio, solicitada do mesmo jornal ao Superintendente Municipal contra o hábito deles colocarem suas malas no meio da rua Marquês de Santa-Cruz, “interrompendo o tráfego”. Os negocistas ambulantes geralmente iniciavam o curso com a trouxinha de pano ou a caixa de bufarinhas. Mas somente as mulheres portavam a trouxinha e eu conheci na minha meninice a uma delas de nome Labibe. O comerciante de caixa a frente da barriga era o “barateza”, conhecido por proclamar este nome. Daquele grau poderia subir mais até à função de teque-teque. O “palita-barata” só negociava com fósforos importados ou fabricados em Manaus na Cachoeirinha. Trazia costumeiramente a tiracolo uma lata quadrada de estanho ou folha de chumbo onde vinham os maços embalados desde a origem. Apregoava pelas ruas — Palita barata! Ja o teque-teque era mais aperfeiçoado no seu ramo de negócio, que é aliás de origem portuguesa, muito embora de portugueses não se tenha notícia no tipo de vendilhão. Pelo menos é o que se informa em Ramalho Ortigão, que o descreve em Portugal. Arcava com cerca de quarenta quilos de variedades necessárias, que era o peso normal da caixa de armarinho, com bem arrumado sortimento e dotada de portinhas e escaninhos tapados com vidro, a “caixa-de-turco”, geralmente denominada pelo vulgo. Naquele exíguo almário havia de tudo, desde o papel de alfinetes à dentadura postiça, cosméticos, bigodeiras, óculos de aros de alumínio, ceroulas, peúgas, rendas, novelos de lã, tesourinhas, pentes, colarinhos e punhos duros, etc. Sobre o almário iam dispostas algumas peças inteiras de fazenda, morins, chitinhas mamãe-abre-olho ou piraurucu, toalhas felpudas e de mesa, lençóis, poucos vestidos já prontos ou apenas alinhavados, blusas de pijamas com alamares, etc. E na curva do braço livre um ou dois guarda-chuvas, de acordo com o tempo, e mais troços vendáveis, consoante o faro comercista. Numa das mãos o teque-teque levava o metro seccionado em dois pedaços unidos por sola e com eles alertava a freguesia distante em ritmo de matraca. Descansava geralmente das longas jornadas numa calçada alta, libertando-se das ombreiras de sola forradas de pano. Era assim que se via sempre aquele mascate morador na rua Costa Azevedo. Ali pela década de vinte, talvez, apareceu uma cançoneta alusiva ao comerciante. Não consegui reter todo o texto, apenas o início e a música. Dizia: Eu sê turca chama Jurja / passa a vida disgraçada / trabalha dia intera / pra vender tuda fiada / eu vende a bresdazon / eu vende pra dinera/ Jurja fica danada / que freguês é galotera. Por aí assim, e falava em “golarinho bunda virada”, “pente fina pra biolho marca elefante”, “bó darruz”, etc. Os mascates ambulantes, não escapavam à verve popular, que os maltratava com epítetos de ladrão, careiro, explorador, marreteiro. Mas os meninos faziam pior: gritavam de longe — Caga sebo! Caga sebo! Não havia muitos turcos em Manaus, porém o povo generalizava a casta de mercadores ambulantes, envolvendo-os no mesmo grupo dos sírio-libaneses. O que motivava o vendilhão a percorrer longas distâncias sob o sol e a chuva era a centralização do comércio, reduzido ao foco — avenida Eduardo Ribeiro, ruas da Instalação da Província e Marquês de Santa-Cruz, Remédios e mercado publico municipal. Quase todos os mascates sírio-libaneses residiam na área-chamariz que era o populoso bairro dos Remédios. Dali eles partiam em leque para todos os cantos da cidade, inclusive para o rio, pois que os havia igualmente embarcados em canoas, a tentar a freguesia dos motores e lanchas. Progrediam astuciosamente, plantavam-se em portinhas exíguas e mais tarde em lojas de várias portas. Um dos clássicos mascates que sempre conheci era o Mansour da rua da Instalação da Província. Outro foi o pai do jogador L6, um turco que se mandou para Salônica após a Primeira Guerra Mundial. Mas esse era mesmo turco, tão turco como o Jorge Dau. O povo na sua festiva indiferença pelas origens englobava as nacionalidades, falando de “turcalhada” quando se referia aos nossos amigos árabes. Mas sem malícia. O ambulante citadino não se recusava a vender fiado. Era um risco que corria, e certamente grande, quando se tratava de cercar a bolsa do pobre. Vi muitos deles com sua caderneta de notas (sempre em árabe) sacramentando o débito do freguês ou do “patrícia” (porque na sua necessidade de transacionar era obrigado a identificar-se e a tutear o comprador em perspectiva ou mesmo o freguês cativo). No meu tempo de rapaz alcancei ouvir muitas anedotas a propósito do mascate, que como figura popular não podia deixar de freqüentar o anedotário. Uma delas inclusive era comumente citada para mexer com certo mocinho inimigo do trabalho e esperto devorador do capital paterno. Dizia-se que certa noite o fedelho chegou-se ao pai e exigiu uma lambreta. O pai concordou e no dia seguinte apresentou ao filho um novelo de lã de cor preta. E outras. O comerciante Jorge Dau acima citado como exemplo, era turco de nação e fundaria mais tarde a grande loja de fazendas ARMAZÉM DA TURQUIA, cuja sede não me foi possível ainda localizar. O Mansour e o Bader, este um dos palita-barata, também progrediram e foram donos de lojas de fazendas na rua da Instalação da Província. Outros, teque-teques, como o senhor Mamede, libertaram-se da caixa de armarinho e passaram a lojistas muito afreguesados, inclusive dentro do mercado público. Quando esses mascates desapareceram de circulação, já estavam com o capital solidificado e tornaram-se até grandes proprietários de imóveis, mas realmente jamais tiveram inclinação para a indústria. Muito dificilmente os filhos se deixaram contaminar pelo micróbio comercista, tomaram outras direções na vida, adquirindo títulos liberais e/ou acomodando-se em funções burocráticas. Hoje quase nada mais resta daquela multidão de árabes e de otomanos que contribuiu de certa forma para o progresso da cidade. Seria o caso para relembrarmos a figura andeira do regatão (cuja origem nunca foi arábica) que levava aos mais distantes rincões fluviais um pouco da comodidade gozada nas cidades. O bufarinheiro levantino tornou-se uma necessidade gerada pela centralização do comércio urbano, mas hoje seria mais difícil a sua resistência porque a descentralização estendeu os raios da oferta aos mais longínquos arrabaldes da capital. Quero acreditar que no início de sua carreira comercial o mascate passasse da banda baixa, comendo mal e dormindo em cortiços e estâncias, que os havia em profusão por toda a rua doutor Miranda Leão, dos Andradas, Barão de São Domingos, da Praia. Ele saía de casa pela manhã com um pão sirio da estrutura de um prato e da espessura de dois dedos mais ou menos. Quando a fome do meio-dia o surpreendesse, não voltaria aos penates: arriava a matalotagem na calçada ou num local discreto e comia seu pão descansadamente. Assim o vimos obrar quando menino curioso. E a indumentária era simples e vasqueira: contava meu pai que os primeiros árabes chegados a Manaus ainda traziam velhos hábitos, do tipo usar a túnica comprida e o gorro (vide figura do barateza) ou o fez. Calculo como foram recebidos pelo povo e bem depressa abandonaram as roupas estranhas para os misoneístas. Todavia pelo carnaval muitos deles aproveitavam para relembrar seus costumes. Isso não seria de admirar porquanto custou aos portugueses deixar o costume de usar a banda vermelha, as calças de pano cru, a camisa de Saragoza e os barulhentos socos de pau. Muitos árabes usavam brincos de ouripel e argolas. Sobre a carência de documentação fotográfica dos tipos populares, existem duas respostas: a história de antigamente não lidava com o indivíduo social e sim com o herói, as datas e os fatos. Os documentos, poucos, fotográficos, são difíceis de reproduzir, mas encontrei alguns principalmente mascates com baú de lata e quiosques de madeira.
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