terça-feira, 5 de julho de 2011

MÁRIO YPIRANGA POR ELE MESMO

Não fui um menino criado à barra da mamãe, mas meu pai severamente controlava minhas andanças pelos descaminhos do mundo, a fim de evitar que me acontecesse o mesmo mal que entanguia de ócio a muitos garotos da minha idade, inutilizados desde cedo para o curso de humanidades.

Eu fui cidadão do mundo aos sete aos de idade, solicitado para figurar em pastorinhas, clubes carnavalescos, festinhas escolares, e algumas vezes também ameaçadas nas escolas, pelas pofessoras tolerantes, de bater na marinha. Meu pai me estimulava o gênio competitivo, dava-me versos para decorar e dizer nas ocasiões oportunas, e ainda hoje de alguns deles me lembro perfeitamente. Cantava. Sabia cantarolar e não esqueci as cançonetas alegres e as modinhas de há setenta anos com que alegrava reuniões familiares e escolares. Fui presidente da Escola Dominical, eu que não era batista, nem a família, mas meu pai achava que eu estava bem indo ajudar a louvar a Deus. Impressionante é que por essa época era eu pajem de Santo Antônio na Igreja de São Sebastião, frequentada por minha mãe católica praticante. Como se vê, desde menino eu já acendia vela a Deus e outra ao diabo, pois dizem ser eu o diabo em figura gente.

Aos onze anos andava de escoteiro, na Legião Amazonense de Escoteiros do Instituto Universitário Amazonense. Muita gente admirava-se da minha audácia, sair às quatro da madrugada do bairro dos Tocos (Aparecida) para a sede da Legião, sozinho e a pé.

O primeiro grande périplo que fiz foi aos onze anos de idade, como passageiro de um regatão de quatro faias, para Itaquatiara, para mim o fim do mundo... Talvez essa viagem e mais outra ao rio Mapiá influenciassem as minhas inclinações históricas para o livro que escrevi – O Regatão.

Mas foi no Ginásio Amazonense (Colégio Estadual D. Pedro II) que as minhas talvez encubadas reservas de simpatia pelas línguas, história, geografia e literatura aflorassem com ímpeto decisivo, pois foi ali naquele ninho de poetas adolescentes, de pintores, teatrólogos, caricaturistas, cientistas bisonhos, revolucionários, que iniciei, à altura de 1927, a publicação de jornais estudantis, a princípio manuscritos, depois datilografados e por fim impressos. O meu espírito polêmico alvorecia naqueles ímpetos juvenis, a par dos primeiros versos românticos e dos primeiros contos regionais. Valorizar a terra foi sempre o meu objetivo, e para tanto empenho busquei primeiramente a experiência dos meus ancestrais cabocos.

Deixando o Ginásio em 1930, após o entrevero político que deu a nós ginasianos a glória de havermos sido os pioneiros no deflagrar a guerra contra o regime do Dr. Washington Luís, a política dos homens me desencantou. Arribei com armas e bagagens para os rios Negro e Branco, por onde perambulei cerca de dois anos a catar subsídios para contos e crônicas. Regressando, entrei de bolsos vazios e com espírito referto de entusiasmo pelas tradições antigas numa indeclinável perspectiva de resgate do passado heróico da minha gente. Tive os meus altos e baixos, minhas querelas rompantes, meus deságios intransigentes, minha decepções e triunfos, porém a dura e inamolgável carapaça filosófica que enverguei me supria de bastante indiferença para os derrapamentos.

Minha primeira polêmica, à altura de 1923 ou 33, foi contra um cidadão português, metido a poeta, tipógrafo do jornal União Portuguesa. Ele havia saído de gênio, utilizado num plágio indecente os versos de Menotti Del Picchia, do poemeto “As máscaras”. De lá para cá, se acentuou mais o meu faro para os plágios, dos meus livros, principalmente, muito visado pela mediocridade presunçosa. Guardo, com usura, o galeão de provas corrigidas por mim, daquela polêmica arrasadora. Meus livros têm sido pilhados descaradamente, mas tenho reagido contra a desfaçatez, denunciando os lunfas.

Aos oitenta e um anos de idade eu posso orgulhar-me de haver dado às gerações futuras bastantes subsídios para a história da cultura da minha terra, pois cerca de quarenta obras já constituem razoável patrimônio histórico-literário que honram o exercício da minha profissão de professor e historiador”.

Fonte: Negritude e Modernidade, 1990

Mário Ypiranga Monteiro (23/01/1909-08/07/2004)

Nascem em Manaus, foi advogado, escritor, professor, pesquisador do INPA,bolsista do Instituto Histórido Ultramarino (Portugal),professor de Geografia Geral, no Colégio Estadual,professor da Faculdade de Filosofia, Ciencias Sociais e Letras da Universidade do Amazonas, participou da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da National Geographic. Algumas de suas obras: In memoriam de Cid Lins/Aspectos evolutivos da Língua Nacional/ O Aguadeiro/O espião do Rei/Quarta Orbis Pars/Cristóvão Colombo/O complexo gravidez-parto e suas conseqüências/A capitania de São José do Rio Negro/Memória sobre a cerâmica popular do Manaquiri, ilustrado/ O regatão/Alimentos preparados á base da mandioca/Prêmio Sílvio Romero de 1962/O sacado/Roteiro do Folclore Amazônico/Antropogeografia do guaraná/Ceramografia amazônica/Revista de Antropologia do Ceará/Teatro Amazonas/Folclore da Maconha/A Catedral Metropolitana de Manaus/ Roteiro Histórico de Manaus/História do monumento da praça de São Sebastião/Fatos da Literatura Amazonense/História da Cultura Amazonense/Fases da Literatura Amazonense/Danças folclóricas singulares do Amazonas/Síntese histórica da Polícia Militar de Manaus/Dona Ausente/História do monumento á Província do Amazonas/Elogio sentimental dos bichos amazônicos/Carros e carroças de bois/Cultos de santos e festas profano-religiosas/Gotas de sangue/Notas sobre a Imprensa Oficial do Estado/Elogio do lixo/A renúncia do Dr. Fileto Pires Ferreira/Um livro nocivo/Cinopopéia ou a Vida airada de McGregor/A Ceia dos Cozinheiros/Memória sobre o Aeroclube do Amazonas/Negritude e Modernidade/Fundação de Manaus/A expressão da verdade/Cobra Grande/Mocidade viril/ Dalila. Mimo/O Tigreiro/Teatro Amazonas (4 vol)/História da Cultura Amazonense. Ele deixou para a posteridade mais de duzentas obras, sendo 16 delas inéditas.




Um comentário:

Anônimo disse...

Tive a honra de conhecer Mário Ypiranga Monteiro.