quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A CRÔNICA

Uma vez ou outra, ouso em fazer uma crônica; para entendermos, um pouco, sobre este tipo de texto, o professor Carlos Alberto Faraco, do Paraná, nos dar algumas dicas:


• É, em geral, um fato vivenciado pelo seu autor;
• Chamam atenção pelo seu lado pitoresco ou engraçado;
• Fazem-nos pensar na vida;
• Tem em certo aspecto jornalístico;
• O tom é de informalidade;
• É a história que a vida conta, deixa aparecer o lado lírico e trágico do nosso dia-a-dia.


Para ilustrar uma crônica, vamos buscar um trabalho do Carlos Drummond de Andrade –

NO AEROPORTO


Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões, pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.


Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.


Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou inoportuno. Suas horas de sono – e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia – eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê. Andando nas pontas dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.


Objeto que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhece dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis – porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.


Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte. Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade - e, até, que a nossa amizade lhes conferia caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.


Viajou meu amigo Pedro. Ficou refletido na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.


A respeito da crônica do Drummond, o professor Faraco fala o seguinte “Eis aí uma crônica atravessada de lirismo: é um adulto (“ já vivido e puído”) fazendo um relato carinhoso da visita de um bebê (“um amigo de um ano de idade”). Como sabemos pelos dados biográficos de Drummond, o autor fala, nesta crônica, do seu primeiro neto, Pedro. Trata-se, então, do avô falando amorosamente do neto”.


Fiz questão de transcrever esta crônica, em decorrência de estar passando por um momento maravilhoso, exatamente como o Drummond passou: vivenciar o sorriso da minha neta Duda – quem ainda não passou, um dia passará a curtir o sorriso de um neto (a). É isso ai.

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