sábado, 25 de fevereiro de 2023

LEMBRANÇAS DE UM PASSADO DISTANTE PARTE V

 Por José Rocha

Eu deveria ter uns nove ou dez anos de idade, morava na Rua Igarapé de Manaus, era um domingo de manhã cedinho, resolvi sair do barraco para pegar umas mangas no “Quintal do Dural”, avistei no meio da rua um jornal em forma de uma bola, corri e dei uma bicuda no papel. Ai, ai, ai, ai, ai!

O meu dedão ficou todo arrebentado, com a unha do dedão do pé direito suspenso apenas por um pedaço de pele, cai no chão "morrendo de dor!"

Um vizinho, amigo de meu pai, prestou os primeiros socorros e mandou avisar ao meu genitor. Falou que aquilo era uma pegadinha da molecada da rua: colocaram uma pedra dentro do jornal, ficou todo arrumadinho, com a intenção de pegar um otário que nem o escriba aqui.

Pois bem, o meu velho pegou uma tesourinha de cortar unhas, passou álcool para desinfetar, cortou umas peles e puxou a unha na maior. Meu Deus!

Fui à Lua e voltei vendo milhões de estrelas! Para completar, colocou um chumaço de algodão untado de uma mistura de resina chamada de goma-laca e álcool etílico, que ele usava para envernizar os seus violões (luthier).

Era um santo remédio, mas doía até a alma!

Depois de estabilizado, fui ajudado a caminhar tipo um Sacy, pulando com uma perna só.

Ao chegar em minha residência, peguei uma “peia”, como era de costume, pois na rua aprontou, certo ou errado, em casa, o pau, levou.

Passei uma temporada no estaleiro até melhorar, na base do “Melhoral” para aliviar a dor geral.

Era vazante do rio, comecei a dar umas caminhadas pelo campinho de futebol da várzea, de repente, mais do que repente, pisei num prego enferrujado no mesmo pé arrebentado. Meu Deus!

Alguém arrancou o prego na maior.

Chegando em casa, os meus pais falaram:

- Ainda bem que este moleque está vacinado de antitetânica (uma injeção que previne o tétano).

Vou confessar uma coisa para vocês: passadas décadas depois, fui até uma UBS e fui obrigado a tomar uma antitetânica, falei para a auxiliar de enfermagem, uma amiga coroa lá da Cidade Nova:

- Vou tomar essa aí, pois o prego do “véio” aqui está enferrujado e não vou querer passar tétano para as “novinhas” do pedaço.

Ela começou a rir e, falou:

- Ah, é, é, sêo fio de égua!

Enfiou com vontade a agulha.

Respirei fundo e falei-lhe:

- Poxa, maninha, tu não sabes nem brincar! Eu, hein!

Voltando ao passado. Tive de voltar à escola, pois já tinha perdido muitas aulas.

O pé de boa era vestido com sapato e meia preta, o outro, arrebentado, de sandália, com o dedão e o meio do pé inchados e cheios de algodão, esparadrapos, gases e pomadas.

Eu andava com o pé doente de lado, pois não conseguia firmá-lo ao chão, tudo doía.

Não deixavam entrar com os dois pés de sandálias, apenas o doente! Era uma coisa hilária, antigamente.

O problema maior eram os colegas que gostavam de pisar exatamente no pé doente “só prá fescar”. “Fios de uma égua!”

Certa vez, comecei a coçar a cabeça com muita frequência.

Minha mãezinha pegou uma toalha branca e um pente fino e começou a passar em minha cachola. Doía prá porra, pois o meu cabelo era pixaim.

Depois de várias sessões de martírio, ela falou:

- Esse moleque está com piolhos até o talo!

Largaram o Neocid (um inseticida em pó, para matar baratas, formigas e pulgas, mas utilizado, indevidamente, no combate ao piolho na década de 60).

Os piolhos se foram, mas ficaram as lêndeas (os ovos dos piolhos). Um vizinho trouxe um cortador de cabelos manual e “pelou no zero” com ajuda, também, de uma navalha.

Todo careca pegava “melo” (cascudo) na cabeça. Era praxe. Primeiro, peguei dos meus irmãos mais velhos, depois, dos colegas de rua e, por final, dos coleguinhas do Colégio Barão do Rio Branco.

Fiquei um bom tempo com medo, não de piolhos, mas de ficar careca e pegar “melo” no corredor polonês. Eu, hein!

Quando completei doze anos de idade, fomos morar na Vila Paraíso (atual, Villa Pê, para os íntimos), na Avenida Getúlio Vargas.

Quando foi interligado a ladeira de Rua Tapajós com a Avenida Leonardo Malcher, os mais audaciosos desciam de patins e patinetes de rolimãs do início da ladeira, numa velocidade muito louca até a subida da Leonardo.

Lembro do “Kaverna”, ele descia de patins de cabeça para baixo, pois era o melhor esqueitista de Manaus. Era nosso ídolo.

Fui “na corda”, pois a galera falava que somente quem “era macho” tinha coragem de descer lá de cima.

Não deu outra: desci de patins e ainda dei uma embalada com os pés para pegar mais impulso, quando estava no meio da ladeira, uns maus elementos jogaram vários tijolos ao mesmo tempo, fiquei desiquilibrado e o patins foi para um lado e desci com a cara no chão por vários metros.

Fiquei em carne viva, desde a testa até o dedão do pé. Meu Deus! Um vizinho, gente boa, levou-me até o meu barraco.

Era um domingo e os meus pais estavam em casa.

A primeira coisa que fizeram foi dar-me uma peia, pois como era de costume “na rua aprontou, certo ou errado, em casa, o pau, levou!”

Depois, fui direto ao banheiro. Ai, ai, ai, ai. Ai!

Ao sair daquele martírio, passei por uma sessão de “Merthiolate”, um composto químico que continha mercúrio, com propriedades antifúngicas e antissépticas, mas que “ardia até a alma”. Meu Deus!

Por falar em remédios antigos, lembro do “Melhoral Infantil”, para dor de cabeça, gripes e resfriados.

Ele era docinho, gostosinho, mas, quando a minha mãe inventava de tomar junto com “O Chá de Alho e Limão” a coisa toda mudava de feição. Tomava na base da “porrada”, se vomitava, repetia “até eu engolir tudo de uma vez”. Pense.

O outro, lembro muito bem, era o famoso “Biotônico Fontoura”, um medicamente oral que fornecia ferro e fósforo para curar a minha anemia e, também, para a abrir a fome.

Este último, não, pois eu comia feito uma draga.

Vocês sabiam que eu gostava deste remédio? Sim, senhor!

Ele continha alto grau de álcool em sua fórmula e eu ficava doidão com uma colher, imaginem duas!

Tinha, também, uma tal de “Emulsão Scott”, um terror das criancinhas desde 1830!

Um famigerado óleo de fígado de bacalhau.

Fedia que “só o caralho” e dava vontade de vomitar na hora. Pegava “peia”, mas não abria a boca nem com nojo de pitiú de bodó!

Dias desses, estava com um grupo de amigo “da melhor idade”, quando comentamos sobre esses “remédios” de nossa infância e o quanto aprontávamos.

Mostrei-lhes as marcas do passado: joelhos, canelas, pés, braços e mãos todas com marcas pretas, apesar de eu ser preto!

Foram raladuras que detonavam a pele, a carne e iam até o osso! Ai, ai, ai, ai!

Guardo essas marcas físicas e gosto de lembrar e escrever delas, pois são lembranças de um passado distante.

É isso aí.