sexta-feira, 4 de maio de 2007


O prefeito e a cangula pensa
Rua dos Andradas. Aos fundos, na rua Floriano Peixoto, o decadente prédio onde outrora funcionou o glamuroso Hotel Amazonas, que hospedou ilustres personalidades da república. Estamos no centro histórico da cidade de Manaus - a capital dos operários eletrônicos da Amazônia - em sua área mais degradada. São quase 8 horas da noite. O comércio local há muito fechou a porta das dezenas de estabelecimentos de miudezas e outras quinquilharias. O lixo, devidamente ensacado, foi depositado na frente das lojas à espera do caminhão de coleta, o que só acontecerá bem mais tarde. Justamente nesse período de tempo, o cenário será inteiramente modificado, no trecho entre os fundos da Igreja Nossa Senhora dos Remédios e a rua Mundurucus, única rua do centro da cidade a desembocar numa bucólica escadaria, hoje soterrada por um aterro com grossas camadas irregulares de asfalto, fruto da insanidade urbanística que há quase trinta anos desfigura, dia-a-dia, o patrimônio histórico e paisagístico de Manaus.Os desavisados que ali passassem e pousassem os olhos nesta cena - captada pela minha câmera fotográfica - imaginaria tratar-se de puro ato de vandalismo. Lêdo engano! Trata-se de um outro fenômeno social: anônimos cidadãos, ao tentar se incluir, informalmente, na economia da cidade no setor dos reciclados, deixam um rastro de sujeira, que só os analfabetos políticos poderiam imputar como total ausência de regras de conduta. Papel, papelão são os objetos desse desejo. Mulheres com criança de colo, crianças e adultos, jovens e mais velhos, são os protagonistas dessa obscenidade que diuturnamente atinge aquele trecho, logo após o lusco-fusco do anoitecer que banha a capital da Zona Franca, essa cidade morena que ostenta o título de quarto PIB brasileiro.Eis que o prefeito Serafim Côrrea, há dois anos do encerramento do seu mandato, resolveu por fim à escandolosa proteção de abastados setores da cidade na cobrança do IPTU. Há pelo menos duas décadas os reajustes eram irrisórios, cabendo às classes médias e à população mais pobre o ônus de manter esse mecanismo classista de privilégio de muito poucos. Mais do que uma peça publicitária, a divulgação da decisão política do prefeito encerra princípios inegáveis de justiça social contra a desigualdade alimentada pelos suseranos encastelados no poder: "paga mais quem pode; paga menos quem não pode; e não paga nada quem não tem com o que pagar".Entretanto, uma lógica anti-dialética insiste em defender a tese classista de sempre: "paga quem pode; quem não pode se sacode". Eis o retrato acabado de uma cangula pensa; e, pensa para a direita, meus prezados.
No quesito IPTU, tô nessa barca com o Sarafa! Um IPTU justo poderia evitar a constrangedora cena da imundície reinante em algumas áreas do centro histórico da cidade, livrando-nos da falta de fiscalização a que estão submetidas as áreas degradadas que ainda não foram objeto de revitalização pelo poder público.Evidentemente que a questão da inclusão social, que está por trás da sujeira provocada pelos que tentam se incluir na vida social e econômica da cidade, há muito reclama por uma discussão mais aprofundada sobre o modelo Zona Franca, que, se retirou o Estado da indigência do pós-ciclo da borracha, gerou uma concentração de renda perversa, haja vista a pobreza da nossa periferia. Um desafio para todos, especialmente para a esquerda política, outrora mais crítica quanto aos limites do modelo econômico baseado em incentivos fiscais e na abolição de alguns impostos. Eis o desafio intelectual de hoje, se não quisermos que o cérebro vire tacacá nos verões que se anunciam com o degelo próximo.
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NOTA1: Cangula - papagaio ou pipa grande e que não imbica.
NOTA2: Penso - gíria de empinador de papagaio que se refere ao papagaio que tende a inclinar para o único lado.
Fonte: O manaura - Leôncio Oliveira, Manaus: Edições Kintaw, 2005.
Curiosidade: Até o presente momento, a obra de Leôncio Oliveira é única. Apesar de algumas irregularidades (como a grafia de picica, com dois esses, que mereceu uma crítica de Zefofinho de Ogum, consultor e conselheiro espiritual do site
PICICA - Observatório dos Sobreviventes), é leitura obrigatória para quem aprecia a erudição cabocla, ou o caboquês, segundo o filólogo amador Joaquim Marinho, que escreve a orelha do livro.
Rogelio Casado

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