Escrever sobre os 43 anos
da explosão da caldeira da Santa Casa de Misericórdia - pode parecer, a
princípio, um gosto estranho por coisa sinistra -, muito pelo contrário, pois,
apesar de mais de uma dezena de mortes, este episódio constitui-se num fato que
ficou para a história da nossa cidade e, está servindo de motivo para o
reencontro de um grupo de pessoas que, exatamente no dia da explosão, 14 de
Janeiro de 1970, estavam próximo àquele local, eram moradores da Rua José
Clemente, brincavam na rua e, tinham entre os seus dez e quinze anos de idade,
inclusive, alguns deles sofreram ferimentos graves.
Eu e o Lúcio Menezes somos
amigos desde a nossa adolescência, tenho por ele o maior apreço -
participávamos, na nossa juventude, de um grupo de jovens da Igreja de São
Sebastião – ele era morador da José Clemente, bem próximo a Rua Lobo D’Almada,
exatamente no local onde aconteceu aquele triste episódio.
Conversamos, hoje, por
telefone e, solicitei que fizesse uma narrativa, via e-mail, sobre aquele
fatídico dia e, por ser um excelente cronista, mandou-se o texto abaixo - Na fotografia, o Lúcio é o quinto da esquerda para a direta.
REMINISCÊNCIA
Por:
Lúcio M. S. Bezerra de Menezes
O Bar Caldeira de propriedade da Dona Maria, viúva do Seo
Antonio, e do seu irmão, Adriano, sempre teve um público cativo, são boêmios,
biriteiros, artistas, intelectuais, aposentados e tantos outros assíduos
clientes que por nada deixam de diariamente bater ponto. O Bar foi palco de
memoráveis eventos, num desses o motivo foi a ilustre presença do saudoso
Vinicius de Moraes, o Vininha. Recentemente o Caldeira foi arrendado e, segundo
me disseram, repaginado, ganhou espaço midiático e na esteira dessa visibilidade,
está a conquistar um novo publico, atraído pela proposta mais ousada e mais
arrojada do seu atual proprietário. O que a maioria dos
novos frequentadores desconhece é a razão do nome do Bar e a
tragédia que esse nome guarda.
A paisagem que eu vislumbrava diariamente ao sair de casa ou ao
me debruçar nas suas janelas - exceto pela fumaça de uma chaminé e pelos raros
transeuntes - era estática, o enorme paredão de pedras da Santa Casa de
Misericórdia. Paredão que ganhava vidas ao aninhar pombos e outros pássaros
menores, ilustres inquilinos das frestas que encontravam entre as pedras que o
compunham. É curioso, estou eu a relembrar aquela paisagem, quase uma pintura
de natureza morta e dela sentir saudade, é como se eu, menino passarinho, dela
também tivesse sido inquilino.
No dia quatorze de janeiro de mil novecentos e setenta, Lolô e
Cadinho, meus irmãos, estavam em gozo de férias em Parintins. Eu ficara em
Manaus a resmungar a prisão domiciliar imposta pela minha mãe decorrente de uma
súbita febre que me acometera, estava eu desolado por imaginar meus irmãos a se
divertir na Ilha e por saber-me proibido de me juntar aos amigos Humberto
Breval, o Bebeto, Camilo Gil, o Camel, Mário Garcia, Fausto Biváqua, o
Faustinho e Luiz Afonso, o Lula ou Lulinha, reunidos na esquina da Rua Lobo
d’Almada com José Clemente. Os meninos estavam a praticar a mais nova
“brincadeira”: atirar clips em alvos móveis (gatos, cachorros e,
principalmente, pessoas) através daquelas ligas de empacotar dinheiro.
Partia-se o clips, engatava-se a peça partida na liga posicionada entre o dedo
indicador e o polegar (como se fosse uma baladeira), puxava-se até onde desse e
depois soltava-se o pedaço do clips. O “projétil” ganhava velocidade e o alvo,
se atingido, sentiria uma dor daquelas.
A prodigiosa memória do Lulinha resgata o instante de lucidez do
Bebeto, ao sugerir: “é melhor pararmos com isso, vamos acabar indo parar no
juizado de menores”. Imediatamente após esta frase, exatamente às dez horas da
manhã, a primeira de uma seqüência de três explosões ensurdecedoras ecoou;
gritos, pânico, desespero era o que se via e ouvia. A primeira pareceu um
terremoto, a segunda lançou pedaços de dois corpos e pedras, a terceira, a mais
forte, fez tremer o prédio do então Tribunal de Justiça e dezenas de casas dos
arredores; chovia pedras, tijolos e madeiras, os fios elétricos quedavam-se
arriados em frente a minha casa; se o inferno existe ali estava a se instalar a
sua sucursal. A super pressão no interior da velha caldeira, em decorrência do
entupimento da válvula de escape e o excesso de lenhas colocadas pelos
foguistas foi a causa daquela explosão.
Lula relatou-me que quando viu o Bebeto caído no chão tentou
levantá-lo puxando-o pelos cabelos, mas nesse instante foi atingido por uma
pedra nas costas que o deixou sem andar por quase um mês e por pouco não
fratura sua bacia. Atingido e atônito deixou o amigo Bebeto e procurou se
salvar – quando acionado, o instinto de sobrevivência sobrepõe-se a
solidariedade. Foi nesse instante que eu e a minha mãe saímos de casa
desesperados a buscar resposta para aqueles pavorosos estrondos. Não sabíamos o
que era mais seguro, ficar em casa ou ir para a rua.
Dona Marina, mãe do Lulinha, entrou em desespero ao se deparar
com o filho a se arrastar e a deixar na calçada rastros de sangue.
Bebeto foi o menos afetado, Camilo perdeu o baço, Mario Garcia
sofreu diversas escoriações e o Faustinho, o mais atingido, após inúmeras
intervenções cirúrgicas passou a usar uma bota especial para compensar os
centímetros perdidos de uma das suas pernas. As elevadas dosagens de
antiinflamatórios que por anos foi obrigado a ingerir condenaram-no a carregar
irreversíveis seqüelas por toda a sua vida.
Nunca pensei que pudesse qualificar como bendita a sempre
indesejável febre, jamais esquecerei aquele cenário de pavor, as cenas que
guardo na minha memória se parecem com as dos filmes catástrofe de Hollywood, a
diferença é que são reais, sem duble, sem diretor, sem direito a cortes ou
cenas refeitas, com protagonistas e coadjuvantes. Esse episódio deixou marcas
indeléveis, talvez por isso, sem combinação prévia, quando refizeram a calçada
da Santa Casa apressamo-nos em registrar nossos nomes. Os meninos da Rua têm a
sua própria calçada da fama.
Pela dimensão catastrófica foi um milagre não ter sido pior. Às
vezes fico a me perguntar: estaria a resposta no fato de que o hoje Bar
Caldeira se chamava Bar Nossa Senhora dos Milagres? Quem sabe?
A explosão da caldeira da lavanderia da Santa Casa vitimou de
forma fatal três pessoas, dois foguistas da caldeira e uma senhora que pela rua
passava.
Camilo Gil Cabral é Diretor da Manaus Energia
Fausto Biváqua de Araújo mora no Rio de Janeiro
Luiz Afonso Leite de Moraes é comerciante e advogado
Mário Garcia morou muitos anos na França, há três anos mora no
Rio de Janeiro
Humberto Ruiz Breval Junior mora em Manaus
Por estarmos em Janeiro,
mês de férias, alguns colegas de infância do Lúcio estão em Manaus e,
resolveram fazer um reencontro depois de quarenta anos – o local escolhido foi
exatamente o Bar Caldeira, na esquina da Rua José Clemente com a Rua Lobo
D’Amada – todos estarão reunidos no próximo domingo a partir das 10 horas da
manhã, não somente para lembrar aquele dia triste, mas, para celebrar a vida e
renovar a velha amizade de um grupo de colegas de rua.
Sobre a explosão da
caldeira da Santa Casa de Misericórdia, fiz uma postagem no ano passado e, em
decorrência do encontro desse grupo de velhos amigos, publico link sobre aquela
matéria - http://jmartinsrocha.blogspot.com.br/2012/08/a-explosao-da-caldeira-da-santa-casa-de.html
Um grande abraço ao Lúcio
e aos seus amigos de infância - espero estar junto com vocês no próximo domingo
e, lembrar da explosão da caldeira, bem como, tirar fotografias para publicação
no nosso Blog. É isso ai.
Um comentário:
Eu estava a 100 metros da Santa Casa no dia deste terrível evento. Corri para lá. Eu tinha clientes internados no hospital. O quadro era dantesco e assisti os primeiros socorros dados pelos médicos que se encontravam no hospital. O que vi é inesquecível.
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