quinta-feira, 5 de setembro de 2024

OS CINEMAS DE MINHA VIDA

 Por José Rocha

CINE POLYTHEAMA - Por ficar próximo à minha rua, era um dos que eu frequentava na minha infância. Minha meia-irmã Kelva trabalhava no Cine Polytheama como bomboniere (vendedora de bombons e goma de mascar), ficando às vezes na portaria quando o movimento estava fraco. Era o momento certo para eu entrar sem pagar e ainda desfrutar de algumas balas de minha preferência, o gardano (sabor menta). O Cine Polytheama ficava na esquina das avenidas Sete de Setembro e Getúlio Vargas, e pertencia à empresa São Luiz (nome de fantasia do grupo Severiano Ribeiro). Seu nome era uma junção de “poli”, de origem latina, significando muito, e “theama”, procedente do grego, denotando espetáculos, ou seja, muitos espetáculos. Trata-se de uma denominação utilizada em diversos cinemas e teatros no Brasil. A saída dava-se pela Avenida Sete de Setembro. Com problemas estruturais sérios e sob fiscalização rigorosa da Prefeitura e do Instituto Nacional do Cinema, o estabelecimento teve as suas portas fechadas definitivamente. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional está mais vigilante, pois, a partir de 2012, todo o centro histórico de Manaus foi tombado. Infelizmente, os cinemas de Manaus foram destruídos antes da proteção por lei. Atualmente, abriga uma loja de departamentos. Conservada a parte externa pela Avenida Sete de Setembro, o restante do prédio foi totalmente destruído pelo “progresso” e falta de sensibilidade por parte do proprietário e empresários.

CINE GUARANY - Eu contava com a opção de assistir sem pagar no Cine Polytheama, mas o cinema de minha preferência era o Cine Guarany, que eu frequentava aos domingos, sempre na sessão das 12h45, quando passavam dois filmes: um de bangue-bangue (faroeste) e outro sobre o império romano. O Guarany ficava na Avenida Sete de Setembro, esquina com a Rua Leovegildo Coelho, tendo sido originalmente Cine Olympia, depois Cine Teatro Alcazar. Foi construído com um estilo arquitetônico inspirado no Oriente Médio (mourisco). O último proprietário foi o empresário Adriano Bernardino, tendo na gerência o Vovô Vasco. O aniversário do cinema ocorria no dia 6 de agosto, ocasião em que a cidade ficava em festas, com a programação iniciando bem cedo, com fogos de artifício soltados às seis da manhã, além de ser tocada repetidamente nos alto-falantes a ópera “O Guarany”, do maestro Carlos Gomes. Nesse dia, assistia-se a Cinema ao Ar Livre, com a tela montada no teto do Bar do Pina (que ficava em frente ao cine), passando filmes desde as nove da manhã até às oito da noite. Durante o dia, eram distribuídos centenas de brindes, além de bombons, balões e gibis para a petizada. Este cinema fechou definitivamente as suas portas, sob intenso protesto dos manauaras. Presenciei a derrubada do prédio para dar lugar a uma nova edificação, que abriga uma agência bancária. Foi mais um prédio histórico que foi destruído pelos empresários e pessoas insensíveis que não tinham o menor respeito pela nossa história. Ficou somente a lembrança e nada mais.

 

EU E O CINE GUARANY - Antes de ir ao cinema, eu passava parte da manhã tomando banho no igarapé, pulando da ponte, tanto que, quando dava conta do horário, já era próximo do meio-dia. Corria até em casa, tomava um banho rápido para tirar o cauixi e vestia às pressas a domingueira. Não dava tempo para almoçar. Saía correndo em direção ao cinema que, ainda bem, ficava próximo à minha residência. Enquanto estava na fila para comprar o ingresso, aproveitava para saborear um famosíssimo cachorro-quente (sanduíche de pão com picadinho de carne), servido com refresco de maracujá. Eu gostava de observar a estratégia de um pedinte chamado Jaú. Um senhor moreno de idade, que ficava remexendo umas moedas antigas (patacão) nas mãos, a fim de chamar atenção dos que estavam na fila dos ingressos. Vez ou outra, fazia o pedido: “Uma esmolinha para o cego, uma esmolinha, por favor!” Os mais velhos diziam que ele não era totalmente cego, pois sempre conseguia desviar-se dos homens. Das mulheres, nem tanto, indo direto aos seios, daí ser conhecido por Jaú Mão Boba. Gostava de ficar na área de cima, chamada de poleiro. Quando as luzes se apagavam, era o momento certo para xingar, jogar papel e cuspir no pessoal que ficava no térreo. Algumas vezes era pego, ocasião em que não se livrava de uns doloridos cascudos; outras, era somente advertido pelo lanterninha Farias. Tudo era diversão: o sinal sonoro avisando do início da sessão, o barulho dos ventiladores centrais e laterais, o fechamento das portas de madeira, a escuridão, a abertura das cortinas do telão e o piscar das luzes multicoloridas, o defender do ataque dos veados (homossexuais) que davam em cima dos jovens, os gols da rodada e a gritaria da molecada enxotando o “Condor” para iniciar o filme. Isso marcou a vida de toda uma geração. Lembranças que ficam para sempre.

ASSISTINDO AO FILME “E O VENTO LEVOU” - Eu vendia gibis usados em frente ao Cine Guarany. Sempre fui fissurado em cinema desde a minha tenra idade. Ficava louco para entrar e assistir a um filme, não importando qual o gênero. O importante era sentar numa poltrona e desfrutar da Sétima Arte. Fiquei afoito para assistir ao famoso “E O Vento Levou” (que versa sobre a Guerra Civil americana, com o acidentado romance entre a bela e mimada Scarlett O’Hara e o cínico e aventureiro Rhett Butler, naquele que é considerado o maior filme de todos os tempos. Superprodução de 4,25 milhões de dólares, o mais caro até então e, em se tratando de atualização monetária, um dos mais caros de todos os tempos). Havia dois problemas: primeiro, era de longa duração, em torno de quatro horas e, segundo, o juizado não permitia menor de doze anos entrar para assistir à película. Minha intenção era entrar na marra. Com um olho no gato e o outro no peixe, quando o porteiro abriu a guarda, dei aquela furada (entrar sem pagar). Corri na escuridão do cinema, fiquei quieto na última fila de um lugar chamado poleiro, com um olho na tela grande e o outro no “lanterninha” Farias (funcionário que usava uma lanterna para ajudar as pessoas a encontrar uma poltrona vazia), para não ser pego de surpresa. As quatro horas passaram num passo de mágica e, na saída, misturei-me à multidão, saindo sem ser notado. Já era quase meia-noite. Quando me aproximava da cabeça da Ponte Romana I (na Avenida 7 de Setembro), uma multidão veio ao meu encontro, sem que eu soubesse o que estava ocorrendo. Nessa ocasião, choveram perguntas sobre o meu paradeiro. Fiquei meio sem jeito, mas falei que estava assistindo ao filme “E o Vento Levou”, e nada mais! Avisados os meus pais, estes começaram a chorar de alegria quando me avistaram, pois tinham mobilizado os moradores da Rua Igarapé de Manaus e seu entorno para procurar-me. Na época, a cidade de Manaus era bem pacata, as crianças brincavam na rua até no máximo às nove horas da noite, quando todos entravam em suas casas. Fiquei proibido por uns meses de ir ao Cine Guarany. A peia eu encarei sem chorar, mas ficar sem assistir a um filme foi um martírio; chorava todo final de semana. Mas não teve jeito, tive que cumprir o castigo.

Fonte: Livro e-book ‘O Igarapé de Manaus, José Rocha’