Ao ler o livro de crônica "Evocação de Manaus: como eu a vi ou sonhei", do saudoso manauara Jefferson Carpinteiro Peres, é possível ter uma ideia como era a nossa cidade durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), particularmente, sobre a permanência dos norte-americanos em Manaus, para colaborarem na "Baralha da Borracha".
Com o ataque da base militar norte-americana de Peal Harbor (na Ilha de Oaho, Havaí) por parte dos japoneses e, pelo afundamento dos navios brasileiros, fruto do ataque dos alemães, levaram os dois países a declararem guerra aos parceiros do Eixo (Japão, Itália e Alemanha).
Os nipônicos conseguiram fazer um cerco em todos os países produtos de borracha da Ásia (principalmente, da Malásia e Indonésia), impedindo a saída da importantíssima matéria prima (para fabricação de pneus de aviões) para abastecer os países Aliados, forçando os americanos a buscarem a extração do látex na Amazônia.
Para tal empreitada, o Presidente Getúlio Vargas, firmou os "Acordos de Washington", permitindo a entrada militares e instalação de empresas americanas em solo brasileiro, tendo como garantia a compra de toda a produção de borracha e minérios, apoio técnico e financeiro, além da construção da Usina de Volta Redonda (RJ).
Em Manaus, foi criada a RDC - Rubber Development Corporation (empresa de desenvolvimento da borracha), com depósito de cargas na Ilha de Monte Cristo, atual Estacionamento Público da Feira da Banana (Manaus Moderna, Avenida Lourenço Braga), para dar apoio logístico aos seringueiros e administrar as remessas de borracha nos aviões anfíbios (catalinas), com destino a Miami (USA).
Para o transporte aéreo de passageiros e militares, construíram em semanas (evidenciando a eficiência americana) a pista de pouso do Aeroporto de Ponta Pelada.
Vieram muitos americanos e suas famílias para a nossa pacata cidade, provocando um grande choque cultural, com pessoas loiras de olhos azuis, falando uma língua estranha para a grande maioria (o inglês), fumando cigarros de marcas nunca vista antes, pagando alta gorjetas em dólar, inflacionando o mercado local e expondo comportamentos muito liberais - contrastando com uma sociedade local fechada, tradicional e conservadora.
O então jovem Jefferson Peres vivenciou tudo isso, pois pertencia a uma família de classe média alta, tendo acesso ao que acontecia na sociedade manauara, permitindo escrever com detalhes, anos depois, esses acontecimentos em seu livro de memórias acima citado.
Segundo o autor, os gringos eram altos, brancos, corados e de olhos azuis, surgindo a mania de falar inglês por parte dos manauaras, tipo "Give a cigarette please" - eles utilizavam as marcas americanas Lucky Strike, Camel, Chesterfield e Phillip Morris (disputadíssimo pelo seu gosto suave e cheiro agradável, preciosos nos períodos de falta de produto nacional).
Escreveu o Jefferson Peres "Os amazonenses que trabalhavam na RDC chegavam a dominar tão bem o inglês que a alguns, por esnobação, passavam a falar o português com sotaque - dizem que um cidadão bastante conhecido na cidade, vestindo roupa cáqui, capacete de explorador na cabeça, à semelhança de muitos americanos, pegou um bonde e dirigiu-se ao motorista, perguntando: - Ó sêo condutorr, o senhorr sabe me dizerr onde ficarr avenida Joaquim Naboco? O motorneiro medindo a figura de alto a baixo, fuzilou: - Ora, Fulano, vai à merda!"
Os americanos foram acolhidos com simpatia pela população - eram geralmente bem-humorados e extrovertidos, chocando aos mais velhos pela sua irreverência.
Gostavam de recostar comodamente nas cadeiras dos bares com os pés apoiados sobre as meses (igual aos filmes de faroeste), em compensação, graças ao seu alto nível de renda, eram muitos generosos - davam cigarros e barras de chocolate aos garotos que os cercavam, além de elevadas gorjetas aos garçons.
AS empregadas domésticas eram atraídas por seus serviços, com ofertas de salários irresistíveis, pois a maioria não recebiam nada nas casas de famílias onde trabalhavam e moravam - as lavadeiras de roupas tiveram, também, os seus trabalhos valorizados.
Os proprietários de imóveis alugavam por preço até três vezes superiores aos praticados no mercado local.
Os ianques não eram numerosos e sua permanência não passou de três anos, porém, provocaram uma mini inflação em nossa cidade.
As suas mulheres eram coroas vermelhonas e sardentas, campeãs de deselegâncias com seus vestidos, de cores berrantes e seus sapatos de solas de borracha.
Escreveu o autor "Havia umas poucas que entusiasmavam não apenas pela beleza, mas também pela indiferença com que exibiam seus encantos - nas ruas andavam apenas com o vestido sobre o corpo nu, em casa ficavam inteiramente peladas, sem ter sequer a preocupação de fechar as janelas".
Prossegue "Lembro que um grupo delas, residente numa casa de sótão, ainda hoje existente, na Rua 10 de Julho, entre a Epaminondas e a Ferreira Penas, desfilava tranquilamente a sua nudez, no alto do mirante, e quando a rapaziada ansiosa, se atropelava nos telhados vizinhos, para observá-las, ainda ganhavam das ladies godivas (aristocrata inglesa que gostava de cavalgar nua pelas ruas) adeusinhos de gozação - dizem que elas figuravam na folha de pagamentos da RDC como secretárias, mas, seriam na verdade profissionais do sexo, contratadas para amenizar a vida dos executivos e técnicos, em seu exílio numa distante região tropical, para reduzir o quanto possível o envolvimento com as nativas, evitando problemas com a comunidade".
Com o término da guerra, em 1945, a RDC foi desativando aos poucos seus serviços, com a presença dos americanos cada vez menos até cessar completamente.
Deixaram para a Prefeitura de Manaus as máquinas pesadas da construção da pista do aeroporto (os tratores foram utilizados no aterramento da Avenida Getúlio Vargas).
Os aviões anfíbios Catalinas foram incorporados a empresa americana Panair do Brasil, com filial em Manaus, para voos comerciais.
Os navios americanos que faziam linha dos Estados Unidos para Belém e Manaus "Cambridge, Virginia Lee, State of Delawire e Cel. James Moss", foram incorporados, com outros nomes, a SNAPP (Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará), para serviços de cabotagem e transporte de passageiros.
A presença dos americanos na cidade foi tranquila, apenas chocaram os mais velhos com sua irreverência, deixando alguns legados pós-guerra - o mesmo não se pode dizer da sina dos irmãos nordestinos, que em nome dos esforços de guerra, na "Batalha da Borracha" morreram milhares, esquecidos e abandonados nos seringais da Amazônia. É isso ai.
Fonte:
Livro "Evocação de Manaus: como eu a vi ou sonhei. 2a. edição revista e ampliada/Jefferson Peres - editora Valer. 2002"
Observação: Essa passagem dos americanos em Manaus, a Segunda Guerra Mundial e a sina dos nordestinos na Batalha da Borracha, pode servir para um filme. Fia a dica para os cineastras.
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