sábado, 28 de setembro de 2024

O ZÉ MUNDÃO DE MANAUS Por José Rocha Parte I – Livro E-book

 Nasceu em Manaus, na Santa Casa de Misericórdia, na década de 1950. Quando veio ao mundo, os sinos da Igreja de São Sebastião batiam doze badaladas, exatamente no aniversário do presidente Juscelino Kubitschek. Seus familiares cogitaram chamá-lo pelo prenome do mandatário maior da Nação, porém, ao ser batizado na Igreja dos Remédios, recebeu na pia batismal o nome de José, em homenagem ao seu avô, um cearense que veio para a Amazônia coletar látex.

Seu primeiro lar foi um flutuante (casa de madeira apoiada em enormes toras, próprias para flutuar na água), no Igarapé de Manaus. Para não fugir à tradição, sendo filho e neto de cearenses, passaram a chamá-lo de Zé, um diminutivo carinhoso de José, o mais novo dos irmãos, o caçula queridinho da família. Seus irmãos mais velhos eram conhecidos por José “Galinha Preta”, José “Pacu” e a única mulher, batizada de Maria José, mais conhecida por Zezinha. O nome Zé tinha que estar presente de qualquer maneira.

O local onde Zé morava era um braço do rio, parte de um conglomerado de residências conhecido como Cidade Flutuante, com a maior concentração de casas situada atrás da Rua Barão de São Domingos. O processo de ocupação do leito do rio foi iniciado com o declínio do fausto da borracha, que ocasionou a falência dos seringalistas e levou uma multidão de seringueiros a ficarem sem eira nem beira. Sem ter onde morar, a solução inicial foi a construção de casas sobre as águas da orla do rio Negro e, naturalmente, pelos igarapés que cortavam a cidade de Manaus.

 

As habitações construídas sobre troncos submergíveis, tornando-as flutuantes, possuíam assoalhos e cômodos de madeira, com a cobertura, em sua maioria, feita de palha. Aqueles que dispunham de mais recursos as cobriam com folhas de zinco. Formavam um imenso conglomerado, tão grande que chegou a ser conhecido como uma cidade dentro da própria cidade de Manaus, com mais de duas mil casas e aproximadamente doze mil habitantes.

Neste local existia, além de moradias, todo tipo de comércio: estivas, ferragens, restaurantes, gabinetes dentários, consultórios médicos, drogarias, oficinas de conserto de motores marítimos, vendas de borracha, castanha, juta, couros e peles de animais. Qualquer atividade existente em terra também existia na cidade flutuante! Alguns achavam que aquilo era um cancro, uma vergonha para os habitantes da terra firme, mas foi exatamente ali que o pequeno Zé passou sua infância de forma muito feliz.

Morar em flutuante tinha seus pontos negativos, mas também positivos. A família do Zé era discriminada pelos moradores da parte de cima da Rua Igarapé de Manaus, que se achavam superiores aos pobres moradores de flutuantes. A maioria das famílias residentes nas ruas Huascar de Figueiredo e Lauro Cavalcante, pertencentes à classe média e possuidoras de belíssimas residências, manifestavam preconceitos ainda maiores: falavam que aqueles moravam no bodozal (na lama, onde se reproduz o peixe acari bodó).

Durante a enchente, a família e os animais de criação (gatos e galinhas) ficavam ilhados, com acesso à terra permitido apenas por uma pequena tábua, espécie de escada. O pequeno Zé sofria bastante para passar, pois o risco de queda dentro do rio era grande. Com a água batendo seis meses na madeira, ocorria o rápido apodrecimento das toras de sustentação – dessa maneira, para a troca das bóias, era realizado um mutirão. O danado do Zé era vigiado 24 horas por dia, pois corria risco de afogamento. Em decorrência disso, ele aprendeu a nadar ainda curumimzinho (menino pequeno).

Outra complicação: todos sofriam também com o ataque de animais peçonhentos, cobras e jacarés. Na casa dele não havia luz elétrica nem água encanada. O sufoco era total, pois tinham que recorrer às lamparinas, candeeiros e lampiões para iluminação dos cômodos - um martírio, pois não podiam usar nenhum aparelho eletrodoméstico em casa. O café era torrado e pilado dentro da habitação e fervido num fogareiro à lenha; as roupas eram passadas com ferro de engomar a carvão e a comida era cozida num fogão a lenha, tudo manual, típico de uma casa de ribeirinhos da Amazônia.

Na vazante, a família levava alguns meses para limpar toda a área externa, pois ficava muito lixo espalhado pelo chão, como garrafas de vidro quebradas, latas enferrujadas, tábuas com pregos etc. Por isso, o coitado do Zé vivia sempre com cortes nos pés e muitas feridas pelo corpo. Os banhos eram feitos em cacimbas ou camburões de metal, com água de beber sendo filtrada em potes, bilhas e filtros de barro.

Existia uma grande vantagem: caso o caboclo tivesse algum problema sério com o vizinho, bastava pegar o machado e cortar a corda principal que amarrava o flutuante à beira do rio, ou colocar uma amarra num barco regional, pedir para ser puxado e mudar-se para o outro lado do rio. Como a família do Zé era benquista por todos os vizinhos, nunca precisou sair do local onde morava.

Durante a enchente, o balneário ficava à altura da janela do flutuante do Zé, bastava pular dentro do rio e tomar banho nas águas refrescantes, pois ainda não havia poluição em demasia, apesar dos moradores despejarem dejetos de privadas diretamente no igarapé. Os barcos regionais ancoravam no flutuante do Zé, oferecendo a preço acessível peixe, leite, queijo, farinha e outros produtos regionais, além de tábuas e palhas para a manutenção da casa.

Zé foi estudar no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Sua avó o matriculou no primeiro ano forte (equivalente à segunda série), mas o Zé não sabia ler nem escrever. A primeira tarefa na escola foi realizar uma cópia e ele, na malandragem, pediu ao seu colega Nascimento para fazê-la. Ocorre que seu confrade era canhoto, que pegou o caderno do Zé Mundão, virou na melhor posição e fez a cópia todinha. O Zé foi entregar o trabalho:

– Fessora Genevova, taí a cópia, tá bonita? – falou todo gabola da vida.

– Vá fazer outra cópia, você fez com o caderno de cabeça para baixo! – disse a professora, dando-lhe aquele ralho.

Não se conteve, chorou que nem um bezerro desmamado. Então, a professora descobriu que ele estava na série errada e o encaminhou para a alfabetização. Cobrir as letras foi uma graça para Zé Mundão. Mas, o que ele mais odiava era a hora da merenda, pois não trazia nada de casa e ainda tinha que encarar aquele leite de soja, enviado ao Brasil em decorrência do projeto dos ianques “União Para o Progresso”. O jeito era filar a merenda dos meninos do pré-escolar.

Num certo dia, Zé foi pego e levado pela orelha até a diretoria. Seus pais foram chamados à atenção - moral da história: ganhou uma lancheira novinha em folha, com direito a suco de maracujá e sanduíche de pão com pão. A partir daí, começou a adorar a hora da merenda, gostava de deixar seus colegas com água na boca, e nunca mais tomou o famoso leite de posto!