José
Rocha
Tudo começou há 61 anos, quando um casal com um sonho em comum, decidiu investir num negócio próprio no coração de Manaus. Ele era Antônio Manuel dos Santos Cardoso, um imigrante português. Ela, Dona Maria Ribeiro da Cruz, uma amazonense do Careiro. Juntos, eles compraram um imóvel na Rua José Clemente, 237, no centro histórico da cidade. Lá, eles montaram uma mercearia no térreo e moravam no andar de cima. O nome escolhido para o estabelecimento foi Mercearia Nossa Senhora dos Milagres, uma década depois, passou a chamar-se, definitivamente, Bar Caldeira.
Com o decorrer do tempo, a mercearia começou a atrair um grupo de amigos
boêmios, que se reuniam para cantar, tocar violão e beber cervejas e uísque.
Eles traziam as bebidas de fora, pois a mercearia não vendia bebidas alcoólicas.
Logo o casal percebeu haver uma demanda crescente por esse tipo de produto e
resolveu incluí-lo no seu comércio. Foi então que a Mercearia Nossa Senhora dos
Milagres se transformou no Bar Nossa Senhora dos Milagres.
O bar logo tornou-se famoso e passou a ser frequentado por políticos,
empresários, funcionários públicos, poetas, músicos, escritores e trabalhadores
do centro de Manaus. Era um lugar onde se podia conversar sobre os mais
diversos assuntos, desde os problemas da cidade até as novidades da ciência.
Era também um lugar onde se podia apreciar a boa música e a boa companhia. O
bar era uma casa, uma família, uma escola.
Mas nem tudo foi festa no Bar Nossa Senhora dos Milagres. No dia 14 de
janeiro de 1970, uma quarta-feira trágica, a cidade foi abalada por uma
explosão que marcou a história do bar e dos seus frequentadores. Eram 10 horas
da manhã, quando os sinos da Igreja de São Sebastião anunciaram o desastre. A
caldeira do Hospital da Santa Casa de Misericórdia havia explodido, causando um
estrondo ensurdecedor e lançando pedras e destroços por todos os lados. Muitas
pessoas ficaram feridas e algumas morreram na tragédia.
O bar ficava ao lado do hospital e, por um milagre, nenhum dos boêmios
que já estavam lá foi atingido pelos escombros. Mas o estabelecimento ficou
marcado pelo episódio e passou a ser conhecido em toda Manaus como o Bar
Caldeira. O nome antigo foi esquecido e o novo consolidou-se para sempre.
Os antigos frequentadores fundaram a Universidade Livre do Caldeira
(ULC), uma paródia da antiga Universidade Livre de Manaós (ULM), que havia sido
extinta em 1926. A ideia era mostrar que o bar também formava acadêmicos de
alto nível, pois ali se reuniam doutores e professores de diversas áreas do
conhecimento.
Em 29/12/1974, o Bar Caldeira perdeu um dos seus fundadores, o senhor Antônio Cardoso, que faleceu deixando a viúva Dona Maria Cruz. Para não fechar o bar, ela contou com a ajuda do seu irmão, Adriano Cruz, assumindo a direção do estabelecimento e o manteve por 38 anos, até se aposentar em 2012.
Era uma sexta-feira, 13 de setembro de 1974, quando o poeta e compositor
Vinicius de Moraes resolveu conhecer o bar mais tradicional da cidade, o Bar
Caldeira. Lá, ele juntou-se aos boêmios e tomou cervejas e cachaça com limão e
sal. Dentro do bar, há uma fotografia ampliada que regista o momento em que o
“Poetinha” aparece ao lado de vários boêmios, sorrindo e abraçando a todos. Ele
gostou tanto do bar que deixou um bilhete que se tornou um documento histórico:
“Declaro, proclamo e assino que nesta sexta-feira, 13 de mês de setembro de
1974 estive no ‘Caldeira’, na boa e carinhosa companhia dos maiores boêmios de
Manaus. E adorei. Vinicius de Moraes, 13.9.74”.
Além do Vinicius de Moraes, o Bar recebeu a ilustre presença do Jamelão,
Silvio Caldas, Jair Rodrigues e Kátia Maria (a primeira mulher a frequentar o
local), todos eles foram homenageados tempos depois com os seus nomes na
“Calçada da Fama”.
Para manter viva a história e a tradição, a Velha Guarda Caldeirense sempre foi muito respeitada e admirada, um privilégio para poucos, pois é um grupo seleto de senhores e senhoras que amam e sabem fazer samba de raiz. Eles não se rendem às modas do mercado, mas preservam a essência do samba de qualidade, sendo fiéis e guardiões das belezas que compõem a nossa história. Mesmo com as mudanças no decorrer do tempo, eles seguem se reunindo nos finais de semana para cantar, beber, tocar e se confraternizar, animando o ambiente com os seus sambas, que falam de amor, saudade, alegria e esperança.
O violonista e compositor Flávio de Souza homenageou o Bar Caldeira com
a seguinte canção:
AMIGOS DO CALDEIRA - Como é gostoso / Tomar uma
gelada / Ouvir sambas / Bater papo com a moçada /Tomando umas doses / Entrar na
brincadeira / Fazer samba / Com a Turma do Caldeira / Amigos se reúnem / Para
conversar / Onde os seresteiros / Gostam de cantar Velhos sambas / Que trazem
saudades / Lembrando os tempos / Da minha mocidade / Se eu pudesse / Ficaria a
vida inteira / Fazendo sambas / Com a Turma do Caldeira
No carnaval de 2003, o Bar Caldeira foi homenageado pela Grêmio
Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente do Coroado, com o tema
“Caldeira é Tradição, História e Carnaval”. A escola contou a trajetória do
bar, desde a sua fundação por um português devoto da Padroeira dos Milagres,
até a sua consagração como ponto de encontro dos boêmios e sambistas de Manaus.
Encerrou o desfile com o refrão:
Naveguei em busca da felicidade / De Portugal para esta terra abençoada /
Por devoção à Padroeira dos Milagres / Dei seu nome
a esse humilde botequim / O tempo passou
então / Veio a explosão / Na Santa Casa onde tudo aconteceu / O Bar Caldeira taí
/ A Mocidade faz o povo aplaudir.
Em 2012, uma nova era começou para o Bar Caldeira. Os irmãos Adriano
Cruz e Dona Maria Cruz, fundadores e proprietários do bar, se aposentaram após
décadas de dedicação, passando o bastão para Carbajal Gomes, assumindo o
desafio de manter a tradição e a inovação do bar, que já era uma referência na
cidade. Ele valorizou ainda mais a Velha Guarda Caldeirense. Criou novos
eventos para atrair o público jovem e os visitantes: Rodas de Samba, Shows de Pagode,
Feijoada com Chorinho e muito mais. Investiu, também, na infraestrutura do bar:
Toldos, Som e Iluminação Profissional, Sinos, Cozinha Certificada, Caricaturas
e Fotografia Oficial da Velha Guarda, Cachacinha de Minas, Calçada da Fama, Segunda
Sem Lei, Bloco do Caldeira e Caldeira na Roça, além de alugar e restaurar um
casarão ao lado que foi integrado ao bar. Com essas mudanças, o Bar Caldeira se
tornou ainda mais popular e admirado pelos manauaras e turistas, especialmente
pelos cariocas que estão de passagem ou moram em Manaus.
A partir de 2013, ele instituiu “O Aniversário do Bar Caldeira”, no dia
14 de janeiro, data da explosão da caldeira do Hospital da Santa Casa de
Misericórdia, evento que pesquisei na Biblioteca Pública do Estado do Amazonas.
Coincidentemente, a data é a mesma do aniversário do berço do samba em Manaus,
o bairro da Praça 14 de Janeiro. Não se trata de uma celebração da tragédia,
mas de uma homenagem a um fato histórico que marcou a nossa cidade e que deu o
nome ao Bar Caldeira.
O Bar Caldeira também se tornou um símbolo da intelectualidade
amazonense, por representar a valorização da cultura e da história local. Em
2015, ele recebeu da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, o honroso
título de “Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Amazonas” através do
Projeto de Lei 4.199, de 23 de julho de 2015, sendo sancionado pelo governo e o
decreto foi publicado no Diário Oficial do Estado.
Bar Caldeira é o lugar onde o samba vive, onde os amigos se encontram,
onde as memórias se eternizam.
Hoje, 14 de janeiro de 2024, o Bar Caldeira está completando 61 anos de
história, música e alegria. Neste dia, uma grande festa, com salva de fogos e
grandes atrações musicais, vai celebrar esta data tão especial. Parabéns Bar
Caldeira! 61 anos de história e tradição, não é para qualquer um, não!