Por José Rocha
Eu deveria ter uns nove ou
dez anos de idade, morava na Rua Igarapé de Manaus, era um domingo de manhã
cedinho, resolvi sair do barraco para pegar umas mangas no “Quintal do Dural”,
avistei no meio da rua um jornal em forma de uma bola, corri e dei uma bicuda
no papel. Ai, ai, ai, ai, ai!
O meu dedão ficou todo
arrebentado, com a unha do dedão do pé direito suspenso apenas por um pedaço de
pele, cai no chão "morrendo de dor!"
Um vizinho, amigo de meu
pai, prestou os primeiros socorros e mandou avisar ao meu genitor. Falou que
aquilo era uma pegadinha da molecada da rua: colocaram uma pedra dentro do
jornal, ficou todo arrumadinho, com a intenção de pegar um otário que nem o
escriba aqui.
Pois bem, o meu velho pegou
uma tesourinha de cortar unhas, passou álcool para desinfetar, cortou umas
peles e puxou a unha na maior. Meu Deus!
Fui à Lua e voltei vendo
milhões de estrelas! Para completar, colocou um chumaço de algodão untado de
uma mistura de resina chamada de goma-laca e álcool etílico, que ele usava para
envernizar os seus violões (luthier).
Era um santo remédio, mas
doía até a alma!
Depois de estabilizado, fui
ajudado a caminhar tipo um Sacy, pulando com uma perna só.
Ao chegar em minha
residência, peguei uma “peia”, como era de costume, pois na rua aprontou, certo
ou errado, em casa, o pau, levou.
Passei uma temporada no
estaleiro até melhorar, na base do “Melhoral” para aliviar a dor geral.
Era vazante do rio, comecei
a dar umas caminhadas pelo campinho de futebol da várzea, de repente, mais do que
repente, pisei num prego enferrujado no mesmo pé arrebentado. Meu Deus!
Alguém arrancou o prego na
maior.
Chegando em casa, os meus
pais falaram:
- Ainda bem que este moleque
está vacinado de antitetânica (uma injeção que previne o tétano).
Vou confessar uma coisa para
vocês: passadas décadas depois, fui até uma UBS e fui obrigado a tomar uma
antitetânica, falei para a auxiliar de enfermagem, uma amiga coroa lá da Cidade
Nova:
- Vou tomar essa aí, pois o
prego do “véio” aqui está enferrujado e não vou querer passar tétano para as
“novinhas” do pedaço.
Ela começou a rir e, falou:
- Ah, é, é, sêo fio de égua!
Enfiou com vontade a agulha.
Respirei fundo e falei-lhe:
- Poxa, maninha, tu não
sabes nem brincar! Eu, hein!
Voltando ao passado. Tive de
voltar à escola, pois já tinha perdido muitas aulas.
O pé de boa era vestido com
sapato e meia preta, o outro, arrebentado, de sandália, com o dedão e o meio do
pé inchados e cheios de algodão, esparadrapos, gases e pomadas.
Eu andava com o pé doente de
lado, pois não conseguia firmá-lo ao chão, tudo doía.
Não deixavam entrar com os
dois pés de sandálias, apenas o doente! Era uma coisa hilária, antigamente.
O problema maior eram os
colegas que gostavam de pisar exatamente no pé doente “só prá fescar”. “Fios de
uma égua!”
Certa vez, comecei a coçar a
cabeça com muita frequência.
Minha mãezinha pegou uma
toalha branca e um pente fino e começou a passar em minha cachola. Doía prá
porra, pois o meu cabelo era pixaim.
Depois de várias sessões de
martírio, ela falou:
- Esse moleque está com
piolhos até o talo!
Largaram o Neocid (um inseticida
em pó, para matar baratas, formigas e pulgas, mas utilizado, indevidamente, no
combate ao piolho na década de 60).
Os piolhos se foram, mas
ficaram as lêndeas (os ovos dos piolhos). Um vizinho trouxe um cortador de
cabelos manual e “pelou no zero” com ajuda, também, de uma navalha.
Todo careca pegava “melo”
(cascudo) na cabeça. Era praxe. Primeiro, peguei dos meus irmãos mais velhos,
depois, dos colegas de rua e, por final, dos coleguinhas do Colégio Barão do
Rio Branco.
Fiquei um bom tempo com
medo, não de piolhos, mas de ficar careca e pegar “melo” no corredor polonês.
Eu, hein!
Quando completei doze anos
de idade, fomos morar na Vila Paraíso (atual, Villa Pê, para os íntimos), na
Avenida Getúlio Vargas.
Quando foi interligado a
ladeira de Rua Tapajós com a Avenida Leonardo Malcher, os mais audaciosos
desciam de patins e patinetes de rolimãs do início da ladeira, numa velocidade
muito louca até a subida da Leonardo.
Lembro do “Kaverna”, ele
descia de patins de cabeça para baixo, pois era o melhor esqueitista de Manaus.
Era nosso ídolo.
Fui “na corda”, pois a
galera falava que somente quem “era macho” tinha coragem de descer lá de cima.
Não deu outra: desci de
patins e ainda dei uma embalada com os pés para pegar mais impulso, quando
estava no meio da ladeira, uns maus elementos jogaram vários tijolos ao mesmo
tempo, fiquei desiquilibrado e o patins foi para um lado e desci com a cara no
chão por vários metros.
Fiquei em carne viva, desde
a testa até o dedão do pé. Meu Deus! Um vizinho, gente boa, levou-me até o meu
barraco.
Era um domingo e os meus
pais estavam em casa.
A primeira coisa que fizeram
foi dar-me uma peia, pois como era de costume “na rua aprontou, certo ou
errado, em casa, o pau, levou!”
Depois, fui direto ao
banheiro. Ai, ai, ai, ai. Ai!
Ao sair daquele martírio,
passei por uma sessão de “Merthiolate”, um composto químico que continha
mercúrio, com propriedades antifúngicas e antissépticas, mas que “ardia até a
alma”. Meu Deus!
Por falar em remédios
antigos, lembro do “Melhoral Infantil”, para dor de cabeça, gripes e
resfriados.
Ele era docinho, gostosinho,
mas, quando a minha mãe inventava de tomar junto com “O Chá de Alho e Limão” a
coisa toda mudava de feição. Tomava na base da “porrada”, se vomitava, repetia
“até eu engolir tudo de uma vez”. Pense.
O outro, lembro muito bem,
era o famoso “Biotônico Fontoura”, um medicamente oral que fornecia ferro e
fósforo para curar a minha anemia e, também, para a abrir a fome.
Este último, não, pois eu
comia feito uma draga.
Vocês sabiam que eu gostava
deste remédio? Sim, senhor!
Ele continha alto grau de
álcool em sua fórmula e eu ficava doidão com uma colher, imaginem duas!
Tinha, também, uma tal de
“Emulsão Scott”, um terror das criancinhas desde 1830!
Um famigerado óleo de fígado
de bacalhau.
Fedia que “só o caralho” e
dava vontade de vomitar na hora. Pegava “peia”, mas não abria a boca nem com
nojo de pitiú de bodó!
Dias desses, estava com um
grupo de amigo “da melhor idade”, quando comentamos sobre esses “remédios” de
nossa infância e o quanto aprontávamos.
Mostrei-lhes as marcas do
passado: joelhos, canelas, pés, braços e mãos todas com marcas pretas, apesar
de eu ser preto!
Foram raladuras que
detonavam a pele, a carne e iam até o osso! Ai, ai, ai, ai!
Guardo essas marcas físicas
e gosto de lembrar e escrever delas, pois são lembranças de um passado
distante.
É isso aí.