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sexta-feira, 16 de abril de 2010

O DESTINO DE AURISTINO

José Ribamar Bessa Freire

07/12/1993 - A Crítica

Essa crônica foi publicada originalmente no jornal A Crítica, em 07/12/1993. Aparece aqui como homenagem ao escritor Áureo Nonato, falecido em 10 de março de 2004.

Quis o destino malino, ou um vaticínio divino, que o nome do menino fosse Auristino. Podia muito bem - e eu opino e assino - chamar-se Levino, Paulino, Silvino, Erondino ou qualquer outro nome típico de militante do PC do B no Amazonas.

- Éguate! Levino não! Levino é nome de filhote de peixe - protestou indignada minha tia Ernestina, irmã de dona Elisa, confundindo alevinos com bugalhos. Em seu tresloucado amor pelo escritor Áureo Nonato, titia sonhou com um filho, cujo nome seria a fusão dos dois: Áureo e Ernestina. Nasceu, desta forma, o Auristino.

Quer dizer, ´nasceu´ é uma força de expressão. Como o leitor já ficou sabendo, Auristino é ´non nato´, isto é, não nascido. Só existiu mesmo na vontade e na imaginação da titia, porque no dia 6 de fevereiro de 1938, o Áureo embarcava no navio Prudente de Moraes em direção ao Rio de Janeiro, como voluntário do Exército Brasileiro, deixando minha tia debulhada em lágrimas, inconsolável, grávida no pensamento, ninando em seus braços o filho que só existia em seus devaneios.

Recriando o passado

Tu e eu, leitor, podemos juntos ninar essa criança, que pode existir também em nossa fantasia. Basta, para isso, impedirmos ou, pelo menos, adiarmos a viagem de Áureo, como no filme "De volta para o futuro". O que aconteceria se o Áureo não tivesse se picado em 1938?

Bom, em primeiro lugar, o 14º Regimento de Infantaria do 1º Exército, sediado em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, perderia um soldado valente e combativo. Em segundo lugar, "Antônio Branquinho e Manuel Tibúrcio Bessa convidam para o enlace matrimonial de seus filhos Áureo e Ernestina a realizar-se no dia 7 de dezembro de 1943 na igreja de São Raimundo Nonato. Após a cerimônia, os nubentes recepcionarão os convidados com uma farta buchada no salão paroquial". Hoje estaríamos comemorando as suas bodas de ouro, com outra buchada.

É isso aí! Depois de quatro anos de noivado, os dois se casaram, e o Auristino, meu primo, nascia em 1944. Dou o desconto de nove meses, para que dona Alvina, a tacacazeira da Xavier de Mendonça, não fique espalhando que titia casara com o vestido cada dia mais curto.

Qual seria, então, o provável destino de Auristino?

O Áureo Nonato, todo sabemos, é um boêmio inveterado. Gosta da noite, de serenatas, de festas e de papo em mesa de bar. Minha tia - tu não sabes, mas eu te conto - era muito caseira e moralista. Essa diferença de temperamento geraria, indubitavelmente, conflitos no lar, conforme já advertira repetidas vezes vovó Maria Elisa. O casamento agüentaria no máximo uns cinco anos, e por volta de 1950 o casal se separaria. Para não ser azucrinado pela titia, o Áureo, finalmente, se mudaria para o Rio de Janeiro.

A dupla Tino-Nino

- Bem que eu te disse, Ernestina, que esse casamento não podia dar certo. Ora tibis! - recriminaria a velha Maria Elisa, ajeitando o coque e dando uma baforada em seu cachimbo.

Estamos em 1950, leitor. A tia Ernestina tem que educar, sozinha, o seu filho Auristino, de seis anos. Pensa bem. Te coloca no lugar dela por alguns minutos. O Áureo, muito correto, manda religiosamente a mesada do menino, ao contrário de uns-e-outros. Mas nós sabemos muito bem, leitor, que uma criança necessita da presença física da figura paterna. A ausência do pai acabou transformando o Auristino em um menino re-vol-ta-do, re-bel-de, uma criança-problema.

Expulso em 1960 do Colégio Dom Bosco por haver chutado no meio das pernas do padre Felinto, quando ele lhe aplicava um "chá-de-burro", Auristino conseguiu se matricular no curso clássico do Colégio Estadual, graças à intervenção de seus tios Manoel e Esmeraldo, que lá ensinavam. Aí conhece alguns maus elementos, se envolve em más companhias e forma a famosa dupla Auristino-Amazonino, o terror dos bedéis.

Aos trancos e barrancos, colando nas provas, fazendo política estudantil para melhor pressionar e impressionar os professores, surrupiando o dinheirinho suado da titia para gastar em esbórnias e herzegovínias, Auristino consegue terminar o segundo grau. Dizem as más línguas que o seu diploma é igual ao do Ronaldo Tiradentes, o monoglota. Mas isso eu não posso provar.

Mamãe, cadê papai?

Com um diploma duvidoso de segundo grau, Auristino tem duas opções, dois caminhos trilhados pelos jovens de Manaus na época: ou faz como o seu pai e viaja para o Rio de Janeiro a fim de tentar a sorte, ou presta concurso para o Banco do Brasil e se matricula à noite na Faculdade de Direito do Amazonas.

Sou imparcial. Tenho coragem de criticar os equívocos da própria família. A titia errou, leitor, na educação do Auristino, essa é que é a verdade nua e crua, dura de admitir. Errou sim. Durante anos, ela jogou o filho contra o pai, cujo nome nunca pronunciou depois da separação. Só chamava o Áureo de "ELE" ou de "O bucheiro". Com muito rancor, ela dizia ao filho que "ELE" era um irresponsável. "Um escritor", ela falava e isso soava mais ofensivo em sua boca do que se fosse "um bandido".

- Mana, você vai perturbar a cabeça desse menino - advertia dona Elisa, que o preparou para a primeira comunhão, dando-lhe aulas de catecismo. Mas de nada adiantou ensinar-lhe a rezar. O Auristino, efetivamente, ficou perturbado. Queria ver o diabo, o Amazonino, o De Carli e o Gilberto Miranda juntos, encapetados, mas não admitia sequer um papo com "ELE". Por isso, a primeira opção - ir para o Rio de Janeiro, onde residia seu pai - estava descartada. Restava a segunda. Fez concurso para o Banco do Brasil e levou pau. Mas usando a metodologia do Ronaldo Tiradentes, conseguiu entrar na Faculdade de Direito.

Com seu salário minguado de professora primária e costurando para fora - costurando mesmo, leitor, que Ernestina Bessa era mulher honrada - a titia custeou a faculdade do Auristino. Em 1970, depois de "conquistar" o segundo lugar no concurso fajutado de "melhor orador do Brasil" (o primeiro lugar, também fajutado, todo mundo sabe quem tirou), Auristino obtém o diploma de advogado, mas, data venia, não sabe o que é uma ação redibitória, um efeito repristinatório, uma liminar, não sabe redigir uma petição.

Auristino ressarcido

Se depois de formado, Auristino tivesse conhecido um pedreiro com a sorte lotérica do João Alves, hoje poderia muito bem ser o prefeito de Manaus, ou até mesmo senador - quem sabe? Mas quem conheceu o pedreiro foi seu parceiro.

Vinte e três anos se passaram. Hoje, Auristino, para vergonha de seu pai, deste seu primo que vos fala e de toda a família, é um vereador de Manaus. Ressarcido. Líder do prefeito na Câmara Municipal, mantendo a velha dupla Tino-Nino dos tempos de estudante

As suas primas Preta, Céu, Teca, Lúcia Helena, Cacau e Mona, todas professoras municipais, bebem a pior água do Brasil processada pela COLAMA; pagam Cr$90,00 por uma passagem de ônibus, quando no Rio de Janeiro é Cr$56,00, e ganham um salário miserável que há tempos não é reajustado, porque o prefeito não vem cumprindo o Plano de Cargos e Salários. Dois maridos de suas primas, médicos da rede municipal, receberam no mês de novembro o salário infame de Cr$35.000,00. Por isso, vão passar o Natal em greve.

Enquanto isso, Auristino, que falsificou recibos pra obter ressarcimentos médicos, está bem de vida e tranqüilão, porque a desmontagem da rede de corrupção no mundo e no resto do Brasil não chega ao Amazonas. O mafioso Pugliesi foi extraditado para a Itália. Pablo Escobar foi morto. O PC Farias entrou em cana. Mas em Manaus, o presidente da CPI que investiga denúncia de emissão de recibos falsos nos ressarcimentos médicos, Bosco Saraiva (MDB, vixe!), pediu prorrogação de prazo para depois do carnaval, dando a maior canja aos criminosos, quando o prazo final para a entrega do seu relatório era ontem.

A Assembléia Legislativa do Amazonas obstaculiza a criação de CPI para investigar a corrupção. O Poder Judiciário beneficia César Bonfim, o chefe dos ressarcidos, envolvido em mil fraudes. Em Itacoatiara, um simples pedido de esclarecimento sobre uso de verbas públicas ao prefeito Mamudinho é indeferido.

Por isso, Auristino está tranqüilão. Votou contra o projeto moralizador do Serafim Correia, que obriga prefeitos, vereadores e secretários a apresentarem declarações de rendimentos à Receita Federal, mas aprovou emenda ao projeto do Leonel Feitosa, que incluía as "concubinas" na declaração. No dia 10 de dezembro, o primo Auristino estará em Coari, acompanhado de uma vidente, na inauguração da Festa da Banana, dando a maior banana para todos nós.

Pai é pai

Desgostoso com a situação de seu filho, Áureo Nonato não conseguiu a paz necessária para escrever "Os Bucheiros" e "Porto das Catraias", havendo cuspido todos os caroços de pitomba. A literatura amazonense ficou empobrecida, sem os seus livros. A tia Dedé ficou de mau comigo, espinafrando: -"Babá, você não devia criticar o Auristino. Ele é ladrão, mas antes de tudo é seu primo".

Sinceramente, só não esculhambo mais o Auristino, porque não quero ferir a tia Dedé, nem ofender meu amigo Áureo. Tudo bem. O Áureo não é responsável pelo monstro ético que gerou, mas te coloca na pele dele, leitor!. Ele deve sofrer muito com isso. Afinal, pai é pai. Além disso, sigo a filosofia do De Carli que, perguntado por que era tão criticado, respondeu na maior cara-de-pau: "Só se atira pedras em árvores que dão bons frutos". Rá-rá-rá! Bons frutos! Logo quem? O De Carli. Rá-rá-rá.

PS - Recado para o Áureo: Meu amigo, foi melhor assim. Você fez muito bem em pegar aquele navio em 1938 para ir morar no Rio de Janeiro. Olha só, meu irmão, a peça que o destino iria nos pregar, se você ficasse em Manaus: o meu primo, o teu filho, o filho da tia Ernestina, fazendo parte de uma quadrilha engravatada. Passa a mão aqui no meu braço. Eu fico arrupiadinho só em pensar na existência do Auristino Bessa Nonato.


Nota do Blog: Esta crônica foi escrita pelo Ribamar faz dezessete anos, publiquei sem a autorização do autor, também não pedi a sua anuência, em todo caso, peço mil descultas ao ilustre escriba, a minha intenção foi homenagear o Áureo Nonato. Tive o privilégio de conhecê-lo lá pelas bandas do Bar do Armando, na Largo de São Sebastião, centro antigo de Manaus. Ele resolveu voltar para a sua terrinha, depois de ter passado mais de cincoenta anos no Rio de Janeiro, passou os últimos anos da sua vida, na sua cidade querida, a Manaus cabocla e risonha. Amealhou alguns reais, tinha condições de morar no Tropical Hotel de Manaus, mas, resolveu se hospedar no Asilo de Mendicidade, na Rua Recife. Por lá conheceu a Salete, uma deficiente visual, cantora e encantadora, transbordava alegria e otimismo; tive a maior felicidade de presenciar o lançamento do seu CD, no Bar do Armando, tendo como produtor o poeta e escritor Arueo Nonato, foi uma bela noite, com direito a tomar copos e copos de Aluá, maravilha! É isso ai!

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